Julita Lemgruber, sobre violência e segurança no Brasil

Por Sinal, ano 4, n. 17
Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central

 

Segurança pública é responsabilidade de todos

A socióloga Julita Lemgruber fala com a urgência que o tema da segurança pública exige. Não freia críticas nem economiza soluções. Diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, fala do alto da experiência de quem foi diretora do Sistema Penitenciário e ouvidora de Polícia do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 a 2000, no começo do governo Anthony Garotinho, e integrou a equipe de intelectuais que formulou o Plano Nacional de Segurança Pública do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. “O plano não saiu do papel. O governo Lula optou, logo no início, por deixar a responsabilidade pela segurança pública no colo dos governadores.” Nesta entrevista a Por Sinal, Julita Lemgruber não poupa ninguém. Da mídia que estimula a sensação de aumento da criminalidade ao que chama de equívoco do governo paulista em optar por uma política de encarceramento, que culminou com a onda de violência comandada pelo PCC de dentro dos presídios. Não poupa nem mesmo a sociedade. “Estamos numa situação em que não dá para achar que vestir branco, abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas e bradar ‘Basta’ vai resolver o problema da insegurança”, adverte. “Segurança pública é responsabilidade de todos.”

 

 Aumentou a violência ou aumentou a sensação de insegurança no Brasil?

A sensação de insegurança aumentou muito, o que é plenamente justificado. Entre 1980 e 2003, por exemplo, o Brasil passou de 11,7 homicídios por 100.000 habitantes para 28,8 pelos mesmos 100.000. Isto traduzido em números significa: 13.910 homicídios, em 1980, e 51.531, em 2003: uma curva que não pára de crescer (gráfico ao lado). É verdade que houve, mais recentemente, pequenas reduções aqui ou ali. São Paulo teve reduções significativas em algumas cidades. Minas Gerais também registrou quedas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mas se a gente pensar no Brasil, como um todo, a criminalidade violenta vem se mantendo em patamares muito elevados, principalmente nos grandes centros urbanos. Por outro lado, no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, tem havido um crescimento grande de crimes contra o patrimônio: assaltos à mão armada e roubos de carro, sobretudo.

 

Qual o papel da mídia nesse processo?

A contribuição da mídia é muito grande. Nós temos desenvolvido, no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), um projeto chamado “Mídia e Violência”. Na primeira etapa, mapeamos nove jornais – três do Rio, três de São Paulo e três de Belo Horizonte. O estudo já indicou, por exemplo, que a imprensa fluminense dá muito mais espaço à violência do que a paulista e a mineira. Essa é uma tendência antiga que certamente contribui para o aumento da sensação de insegurança. Quando fui diretora do Sistema Penitenciário, de 1991 a 1994, o resgate de um preso que estava no Hospital Souza Aguiar pela quadrilha dele foi manchete de primeira página dos jornais do Rio no dia seguinte. Mas duas ou três semanas depois, aconteceu um caso rigorosamente idêntico em São Paulo, e o espaço dedicado ao fato, tanto pelo Estado de S. Paulo quanto pela Folha de S. Paulo, foi apenas um pequeno registro nas páginas policiais. A impressão que se tem é que até os eventos recentes, provocados pelo PCC, a sensação de insegurança em São Paulo era bem menor do que no Rio, e a mídia certamente contribuiu para esta sensação diferenciada.

 

Mas essa linha editorial é algo orquestrado?

São muitos fatores que contribuem para isso. Em primeiro lugar, a violência vende jornal. Nos Estados Unidos, entre jornalistas, há um ditado que diz: “When it bleeds, it leads”, o que poderia ser traduzido grosseiramente por “Se tem sangue, vende”. Durante muitos anos, especialmente a partir da década de 80 e do governo Brizola, a segurança pública passou a ser um tema muito politizado, particularmente no Rio. Houve distorções graves, desenvolvendo-se um estilo de cobertura da violência nada reflexivo, muito factual, e sem a preocupação de ouvir os diversos atores envolvidos no problema. Só muito recentemente os grandes jornais começam a se preocupar com a qualidade da cobertura da violência e da criminalidade. Eu acho que o papel da mídia deve ser exatamente este: contribuir para que a sociedade tenha informação suficiente para discutir sobre segurança pública.

 

A sensação de aumento da insegurança também se explica por outros fatores?

É evidente que os crimes contra o patrimônio aumentaram, e a maior incidência de roubos e furtos se reflete na sensação de insegurança da população. Os moradores de Ipanema e Leblon, por exemplo, áreas com estatísticas de homicídios semelhantes às de Nova Iorque, falam de tal maneira da insegurança que parece que moram nos bairros mais violentos da cidade. Essa é uma sensação que tem muito a ver com os crimes contra o patrimônio e, principalmente, com a desordem pública. Mendigos, pessoas dormindo nas ruas, crianças e adolescentes praticando pequenos furtos, tudo isso contribui muito para a pessoa se sentir insegura. Quer dizer: o espaço urbano está muito abandonado e desordenado.

 

Até que ponto a violência da própria polícia também contribui para o aumento da sensação de violência ou para o real crescimento dela?

No ano passado, a Polícia Militar matou, no Rio de Janeiro, 1.098 pessoas. A polícia de todos os estados nos Estados Unidos, que não é exatamente um país que tem uma polícia reconhecida como respeitadora dos direitos das pessoas, não chegou a matar 300 pessoas no ano passado. A taxa de homicídios no Rio de Janeiro tem se mantido alta: sempre em torno de 6 mil por ano. Já as mortes provocadas pela polícia, que são sempre justificadas como mortes em confronto, têm crescido numa proporção assustadora. Em 1999, primeiro ano do governo Garotinho, a polícia matou 289 pessoas. Assim, houve um crescimento brutal desse número. Nem por isso, os fluminenses viveram com mais segurança (gráficos ao lado). E, pior: uma pesquisa mostrou que mais de 60% dos corpos levaram tiros pelas costas e na cabeça e, freqüentemente, são mais de quatro tiros, o que configura execuções. Aí vem a polícia e diz que foi auto de resistência. Essa situação só continua assim porque não somos nós os mortos pela polícia. É quem mora na favela. É o negro, o pobre, gente que não tem voz. Vivemos numa sociedade brutalmente injusta e desigual. Se fossem nossos filhos, eles não fariam parte da estatística da polícia de mortes em confronto. Assim como nossos filhos, se estivessem traficando, não acabariam na Funabem.

 

 

Como se explica a violência comandada das prisões que abalou São Paulo no meio do ano?

A população carcerária do Brasil dobrou em dez anos, enquanto a de São Paulo dobrou em seis – quase na metade do tempo. Isso exige investimentos maciços na geração de vagas. Quando Nagashi Furukawa assumiu como secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, ainda no governo Mário Covas, havia 60 unidades prisionais. Quando saiu, com a administração estadual nas mãos do governador Geraldo Alckmin, elas eram 144, com 140.000 presos. Embora Nagashi tenha lutado contra esse crescimento, defensor que é das penas alternativas para o criminoso não-violento, a verdade é que São Paulo criou um sistema penitenciário gigantesco, que acabou escapando do controle da administração. O sistema penitenciário de São Paulo recebe, a cada mês, mais de mil novos presos. É impossível qualquer planejamento ou previsão de atendimento adequado. Construíram-se dezenas de unidades prisionais, mas não se cuidou de dar trabalho aos presos, de prover educação, de dar assistência jurídica adequada ou assistência à saúde. Nas prisões de São Paulo, como no resto do Brasil, nem os artigos básicos de higiene são distribuídos regularmente. Há apenas dois meses foi criada a Defensoria Pública de São Paulo. O Rio tem, há muitos anos, a Defensoria Pública atuando dentro das unidades prisionais, o que, provavelmente, contribui para aliviar a tensão interna. O atendimento à saúde nas prisões no Rio de Janeiro, por exemplo, é de muito melhor qualidade porque desde 1992 há convênio com o Ministério da Saúde, e verbas do SUS são repassadas para os hospitais penitenciários.

 

E a corrupção nas cadeias?

Quando as carências são agravadas por altos níveis de violência e corrupção, tem-se terreno fértil para que grupos organizados cresçam, se desenvolvam e oprimam a massa carcerária. É evidente que corrupção e violência também existem nas prisões do Rio, mas o quadro geral é de menor tensão. E, quanto maior a população prisional, mais explosiva a situação: o sistema penitenciário do Rio tem 20.000 presos e o de São Paulo, 140.000. Por outro lado, não se pode esquecer que no Rio de Janeiro vários grupos se desenvolveram nas prisões ao longo dos últimos 25 anos, e a gente poderia dizer que, hoje, o poder está pulverizado entre muitos grupos, o que não parece ser o caso de São Paulo, onde o PCC concentra muito mais poder. Enfim, Alckmin se orgulha do fato de São Paulo ter 22% da população brasileira e 44% dos presos do país. Isso não deveria ser motivo de orgulho. Os eventos trágicos de maio, julho e agosto estão demonstrando que há algo de errado na política de segurança pública de São Paulo e na estratégia que se escolheu de combate à criminalidade.

 

Como a senhora explica essa opção?

A concepção de que apenas prender muito resolve o problema da violência não tem respaldo na realidade. Várias pesquisas demonstram não existir relação direta entre redução de taxas de criminalidade e aumento de taxas de encarceramento. Um estudo feito na Inglaterra, por exemplo, revela que um aumento de 25% na taxa de encarceramento reduz em apenas 1% a taxa de criminalidade. Uma série histórica, de 1991 a 1998, em todos os Estados Unidos, mostra que no Texas, por exemplo, onde a taxa de encarceramento cresceu 144% no período, a criminalidade violenta foi reduzida em 33%. Nova Iorque, que aumentou em apenas 24% a taxa de encarceramento, diminuiu a taxa de criminalidade violenta em 45%, no mesmo período.

 

Por que o índice de criminalidade diminuiu mais em Nova Iorque?

Nova Iorque reduziu mais o índice de violência, embora tenha tido uma taxa de encarceramento menor que a do Texas, porque implantou uma política de segurança mais inteligente. Entre outras coisas, criou o Compstat (Computerized Statistics – programa adotado pela polícia de Nova Iorque nos anos 1990 para combater a onda de violência. O Compstat consiste, entre outras estratégias, de encontros semanais que reúnem toda a cúpula da polícia. É apontado por especialistas como uma revolução gerencial na área de segurança e o principal responsável pela redução das taxas de criminalidade na principal cidade americana) e afastou do serviço mais de 3 mil policiais corruptos. Além disso, tanto Nova Iorque como várias outras cidades americanas beneficiaram-se do boom da economia da era Clinton. Os Estados Unidos, como um todo, experimentou uma mudança grande em sua pirâmide demográfica, com uma redução significativa do número de jovens entre 15 e 24 anos, que é a faixa etária que mais se envolve com a criminalidade.

 

A Lei de Execuções Penais, que já existe há 22 anos, prevê o trabalho do preso, mas menos de 25% dos detentos se beneficiam disso. Falta vontade aos presos ou as penitenciárias não têm interesse em aplicar a lei?

A lei diz que o preso condenado, aquele que já foi julgado, é obrigado a trabalhar. Se fizermos uma pesquisa de opinião, a maioria da população vai dizer que o preso não quer trabalhar. Engano. Para cada três dias trabalhados, o preso desconta um dia de pena. O presidiário é o primeiro a querer trabalhar. Quando se abre uma oficina na penitenciária, os presos disputam as vagas. Por outro lado, eles têm que sustentar as famílias. A verdade é que o Estado brasileiro tem sido incompetente para prover trabalho ao preso. Não podemos continuar apenas construindo prisões. Devemos reservar a pena de prisão para quem é realmente violento e perigoso. Todos os outros infratores podem ser punidos com penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade. Manter um preso numa prisão brasileira, hoje, custa muito caro – cerca de R$ 1.100, por mês, em média. Uma prisão para 500 presos significa um custo de construção de R$ 30 mil para cada vaga. Com este valor é possível construir pelo menos meia dúzia de casas populares, se considerarmos o custo das construídas em regime de mutirão.

 

Existe um país com um cardápio tão variado de violência como o Brasil, em que se combinam o crime organizado e o contrabando de órgãos e pessoas nos centros urbanos e a grilagem de terra e o trabalho escravo no meio rural?

É difícil dizer se o Brasil é o campeão da diversidade também na violência. Em maior ou menor grau, há países com o mesmo cardápio variado de violência. Em alguns casos, com a agravante da existência de grupos paramilitares, da guerrilha e do terrorismo. Bogotá, capital da Colômbia, país com inúmeros graves problemas na área da segurança pública, conseguiu derrubar muito significativamente seus índices de criminalidade nos últimos anos, porque os prefeitos da cidade deram continuidade a políticas de segurança conseqüentes, com muito planejamento e moralizando a polícia – excluindo milhares de policiais corruptos. É verdade que a Colômbia ainda enfrenta problemas brutais: a guerrilha, de um lado, e grupos paramilitares, do outro.

 

A violência no sistema prisional é emblemático da insegurança em São Paulo como as chacinas representariam, simbolicamente, a insegurança do Rio de Janeiro?

São Paulo também tem chacinas, embora tenha havido um esforço para combatê-las porque foi constituído um grupo de repressão a elas. O estado criou, ainda, uma delegacia de homicídios equipada e com policiais bem treinados que conseguiu aumentar a taxa de esclarecimentos desse crime e, consequentemente, reduzir a impunidade. Na área de homicídios – e as chacinas estão neste rol –, é preciso uma polícia inteligente. Para se ter uma idéia, no Rio, o último número de pesquisa, de meados dos anos 90, era de 8% de resolução dos casos de homicídio. O CESeC está desenvolvendo uma pesquisa para atualizar esses dados. O que se sabe, com segurança, é que de cada 100 homicídios que acontecem no Rio de Janeiro, apenas 8 são esclarecidos pela polícia. Quer maior estímulo aos assassinatos do que isso? Em São Paulo, há uma grande discussão em torno desse número, mas parece que está por volta dos 20%. A polícia da Inglaterra esclarece 90% dos homicídios. Isso mostra que não adianta ter leis mais duras, diminuir a idade penal, instituir a pena de morte. Para diminuir os índices de homicídios, por exemplo, precisamos aumentar a taxa de elucidação desses crimes pela polícia.

 

Como a senhora avalia a atuação do governo federal na área de segurança pública?

A opção feita pelo governo Lula na área de segurança pública foi investir na Polícia Federal e não nos estados. A Polícia Federal recebeu recursos e tem desencadeado ações efetivas. São ações interessantes. Do ponto de vista político, elas forjam a imagem de um presidente que não livra a cara dos ricos e poderosos. A Polícia Federal de Lula está aí para enquadrar as elites quando elas pisam na bola. A repercussão disso entre a população é muito positiva. Agora, se formos olhar o Plano Nacional de Segurança proposto pela candidatura Lula e o que foi realizado, o resultado é absolutamente vergonhoso. Ele não cumpriu com o que tinha prometido.

 

Por exemplo?

O exemplo mais candente refere-se aos próprios fundamentos do Plano Nacional de Segurança Pública: a implantação do Sistema Único de Segurança Pública. Por ele, o governo federal teria papel fundamental na integração do trabalho das polícias nos diversos níveis. Seriam criados os gabinetes de gestão integrada em todos os estados, e polícia federal, polícias estaduais e municipais teriam encontros regulares, em cada estado da federação, para discutir as formas de condução da política de segurança pública. Segurança pública se faz com diagnóstico, planejamento, implementação e monitoramento de ações – uma atividade cotidiana que seria liderada pelo governo federal. Mas os gabinetes de gestão integrada não funcionaram jamais, porque o governo federal optou, logo no início, por deixar a responsabilidade pela segurança pública no colo dos governadores. Acredito que foi feita uma avaliação política do risco que o governo federal correria, caso se tornasse um ator importante na segurança pública. Tudo o que desse errado iria para a conta da administração Lula.

 

Mas para que uma política séria de segurança pública desse certo não seria preciso mais tempo?

Era preciso muita vontade política e investimentos de recursos consideráveis, o que também não aconteceu. Na verdade, o governo Lula preferiu ser chamado de omisso do que ser rotulado de incompetente. A decisão foi por fazer ações pontuais, e a Polícia Federal foi instrumentalizada para isso. Outra foi criar a Força Nacional de Segurança Pública. Mas essa Força Nacional tem apenas 7 mil homens. Ela pode funcionar bem em estados em que o contingente de segurança é pequeno. Foi assim, por exemplo, nos distúrbios no Espírito Santo e no Mato Grosso do Sul. Mas o que faria a Força Nacional na crise de São Paulo, estado que já tem 140 mil policiais?

 

O governo alega que o Plano Nacional de Segurança Pública exige recursos elevados e que neste momento se estão criando as condições para que ele comece a se concretizar…

Evidentemente que há propostas no Plano Nacional de Segurança Pública, tanto para a área policial como para o sistema penitenciário, que demandam recursos financeiros elevados. Mas no caso dos gabinetes de gestão integrada, bastaria vontade política. Custaria ao governo federal algumas passagens aéreas para levar representantes da Polícia Federal e da Secretaria Nacional de Segurança Pública, por exemplo, aos encontros mensais nos estados, com as autoridades e polícias locais. Nós já temos um problema brutal que é a existência de duas polícias, a Polícia Militar e a Polícia Civil, que disputam espaço e poder, escondem informação uma da outra e têm um lobby poderosíssimo no Congresso que vai sempre tornar muito difícil a unificação dessas duas polícias. Diante desse problema, o mínimo que o governo federal poderia fazer era tentar contribuir para que as polícias trabalhassem de forma integrada. Segurança pública, eu insisto, se faz com diagnóstico dos problemas, planejamento, execução e monitoramento das ações desenvolvidas, com os vários atores trabalhando de forma integrada.

 

Do lado dos governadores e prefeitos, o que foi feito no sentido da integração e para aparelhar as forças de segurança pública?Não parece que eles também foram omissos?

A omissão é grande em todos os níveis. Nos países do primeiro mundo, é muito forte a concepção de que segurança pública começa na cidade. Na Europa, existe o Fórum Europeu de Segurança Urbana, que congrega 400 cidades. Lá se discute segurança pública a partir da perspectiva da cidade. E qual o papel da cidade? É, sobretudo, a responsabilidade de desenvolver políticas preventivas. No entanto, os prefeitos se omitem, argumentando que segurança pública é um problema dos governos estaduais. Um ou outro acordou para essa nova realidade. O problema da segurança pública precisa ser compartilhado por todos os níveis de administração. Evidente que grande parte da responsabilidade é dos governadores, porque eles têm as polícias militar e civil e o sistema penitenciário. Os governadores também não têm feito a lição de casa. E não se pode esquecer que temos um presidente que foi eleito defendendo um Plano Nacional de Segurança Pública e prometendo que o governo dele lideraria esse processo. Na época da campanha eleitoral, Lula defendia, na televisão, um Plano Nacional de Segurança Pública que foi elaborado durante meses por um grupo de especialistas e continua nas gavetas. Agora, no âmbito do Partido dos Trabalhadores, foi criada outra comissão para elaborar um novo Plano. Será que o próximo sairá do papel?

 

A centralização orçamentária não seria também um empecilho à implantação do Plano Nacional de Segurança Pública?

É claro que os problemas do Brasil nessa área são de tal ordem que os orçamentos dos estados não dariam conta disso. Nem o orçamento federal seria suficiente. Mas a proposta de Luiz Eduardo Soares, que foi secretário nacional de Segurança Pública no primeiro ano do governo Lula, era que se buscassem recursos nas agências internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Falava-se em algo em torno de R$ 3,5 bilhões, o que não era nada de muito gigantesco, porque só o orçamento de São Paulo para segurança pública no ano passado foi de R$ 6 bilhões. Mas a opção foi lavar as mãos. Ainda assim, mesmo com recursos limitados, o governo podia fazer algumas opções. Investir na inteligência é urgente. As polícias técnicas não só são mal treinadas como também não têm equipamentos. Mas todo o investimento na polícia técnica se limitou à Polícia Federal. Essa, sim, está muito bem aparelhada.

 

Já existe um exemplo parecido de gestão integrada de segurança na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Como funciona?

Lá foi criado o Igesp – Integração e Gestão em Segurança Pública. Trata-se de uma reprodução com as cores locais do Compstat. O Compstat, em Nova Iorque, é muito impressionante pelo nível de profissionalismo que se percebe nas reuniões, que são semanais –, começam às 7 horas e acabam ao meio-dia. Em cada reunião, é discutida a área de uma delegacia distrital (a área de um borough). É apresentado o quadro da criminalidade no local e o que está sendo feito, quais as metas que se pretende alcançar. São discussões acaloradas, onde os superiores interpelam seus subordinados, que devem prestar contas do que fazem. São reuniões com a participação das chefias de todas as áreas da polícia. É o tempo todo fazendo diagnóstico, planejando, monitorando. O modelo de Belo Horizonte é muito parecido. Nos encontros do Igesp, o comandante e o delegado responsáveis por determinada área apresentam para seus chefes e seus pares, assim como para representantes do Ministério Público e do Judiciário, o diagnóstico dos problemas de segurança e o que está sendo feito. O resultado tem sido positivo. Já tem havido queda em vários índices de criminalidade na região meteropolitana de Belo Horizonde e, certamente, o Igesp tem contribuído para isto. Há também programas preventivos. Um deles é desenvolvido pelo grupo AfroReggae em parceria com o CESeC.

 

Como funciona?

Quando o AfroReggae nos procurou, querendo realizar um trabalho com a polícia, tentamos contato com as autoridades aqui do Rio, mas a idéia não foi adiante. O governo de Minas Gerais se interessou e começamos a desenvolver o projeto em Belo Horizonte. Em síntese, o projeto pretende diminuir o fosso existente entre a polícia e a juventude pobre das favelas. São dois grupos que se detestam, não se respeitam e que estão o tempo todo em conflito. Numa primeira etapa, o AfroReggae desenvolveu oficinas de música, teatro, circo e grafite com policiais multiplicadores. Numa segunda etapa, os policiais desenvolveram oficinas com os jovens nas comunidades. Essa é apenas uma iniciativa entre muitas outras que estão acontecendo em Belo Horizonte. Outro projeto é o “Fica Vivo”. Quando se olham as estatísticas de criminalidade, constata-se que a maioria das vítimas de homicídios são jovens entre 17 e 24 anos, sobretudo negros e moradores de áreas pobres. O projeto “Fica Vivo” visa a essa população que, além de tudo, é a mais suscetível de cooptação pelo tráfico de drogas. Há análises demográficas que indicam que nos grandes centros urbanos está havendo uma diminuição do estoque de jovens do sexo masculino nesta faixa etária que se poderia comparar com a situação de países que estão em guerra. É algo assustador.

 

A senhora falou que em São Paulo também se registram casos pontuais de diminuição da criminalidade. Onde e qual a estratégia que permitiu essa melhora do quadro?

Diadema e Ribeirão Preto, em São Paulo, por exemplo, tiveram reduções significativas das taxas de criminalidade. As estratégias para isso são diversas. Desde a implantação da lei seca, com o fechamento dos bares das 23 horas às 6 da manhã, até o treinamento de guardas municipais e o desenvolvimento de uma série de projetos de inclusão da população jovem e pobre. Segurança pública no Brasil não precisa ser uma rua sem saída. O fato é que se tem realizado em alguns municípios experiências importantes de integração de ações das polícias e ações preventivas.

 

Até que ponto experiências como as que a senhora teve na Ouvidoria da Polícia do Rio podem contribuir para uma mudança no quadro de insegurança?

As Ouvidorias de Polícia no Brasil aparecem na segunda metade dos anos 1990. Fui a primeira ouvidora de Polícia do Rio, no governo Anthony Garotinho, e a experiência foi muito frustrante. O controle externo da polícia, para ser efetivo, necessita ser absolutamente independente. As ouvidorias teriam que poder fazer investigações por conta própria, investigações paralelas às investigações das corregedorias, e nada disso podem fazer hoje. Seria preciso instrumentalizá- las com uma equipe de investigadores para que se pudessem fazer algumas investigações preliminares, principalmente em casos de queixas graves, para que depois se pudessem cobrar resultados das corregedorias, que são muito corporativas. Enquanto as ouvidorias dependerem das corregedorias, que são o controle interno das polícias, para investigar as queixas da população, não podem ir muito longe.

 

A senhora, então, não teve independência e autonomia para investigar as irregularidades da polícia?

O que aconteceu enquanto fui ouvidora de Polícia é que eu recebia denúncias gravíssimas de violências provocadas por policiais, inclusive mortes, ou de corrupção policial, encaminhava as queixas para as corregedorias, e muito raramente se conseguia qualquer resultado. Por outro lado, mesmo quando as investigações avançavam, naqueles casos em que era absolutamente impossível refutar a denúncia, a punição era muito leve. Embora as Ouvidorias de Polícia sejam um instrumento importante de conquista da cidadania, tal como estão estruturadas hoje, estão muito longe de funcionar com eficácia como controle externo da polícia.

 

Em algum lugar do mundo elas são eficazes?

O melhor exemplo é o da Irlanda do Norte. Lá, a Ouvidoria de Polícia é absolutamente independente e autônoma. Tem 80 investigadores e orçamento próprio. Quando a polícia provoca uma morte – e estamos falando de um país em que acontecem três mortes provocadas pela polícia por ano –, o local do crime é isolado e só pode ser examinado pelos investigadores da Ouvidoria de Polícia. A perícia é independente. Uma grande reforma da polícia foi possível, com a criação dessa Ouvidoria poderosa, a partir do Acordo da Sexta-Feira Santa, que selou a paz entre católicos e protestantes. Acreditava-se que aquele país havia chegado a tal nível de esgarçamento da sociabilidade que a vida em Belfast, por exemplo, tornara-se insuportável. Enfim, não havia vida social. Não havia mais espetáculos de teatro, shows de música. Artista nenhum queria se apresentar na capital da Irlanda do Norte, com medo de que uma bomba explodisse no café da esquina. Ninguém saía mais à noite. Isto é o que eu temo: que no Brasil seja preciso que cheguemos a uma situação de tal rompimento da norma, de tal descontrole absoluto na segurança pública, para que todos acordemos. Autoridades, governos e população.

 

Como em tudo, então, o caminho para a solução do problema passaria pela mobilização social?

A situação é muito grave e não é suficiente vestir branco, abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas e bradar “Basta”. Não é assim que vamos resolver nossos problemas de segurança pública. A mobilização da sociedade certamente é um caminho. É preciso organizar conselhos de segurança nos bairros, nas cidades, nos estados, para que as pessoas estejam capacitadas a cobrar das autoridades, a partir da discussão e do conhecimento da realidade. Sem conhecer, sem saber o que é possível ser feito, ninguém consegue cobrar das autoridades. Fica todo mundo achando que não tem saída, que não adianta fazer nada, todos cruzam os braços e nada acontece. Neste país, todos acreditam que o Estado vai resolver tudo, que o presidente da República, o governador e o prefeito vão e devem resolver tudo. Ficamos todos esperando o salvador da pátria e reclamando que pagamos imposto e nada é realizado. Segurança pública é responsabilidade de todos. Enquanto a sociedade não acordar para essa realidade, não vai ter nem condições de cobrar das autoridades.

 

Mas a cultura da paz parece que começa a se disseminar, ou é impressão?

Existem coisas incríveis acontecendo. A ação dos chamados novos mediadores, as organizações não-governamentais, é o que há de mais dinâmico e vivo na sociedade. Entrando nas comunidades, provocando reformas pontuais, obrigando o Estado a cumprir o seu papel. Se não existisse o trabalho de algumas ONGs, as comunidades estariam em situação muito pior. Afinal de contas, por que o tráfico se instalou, ocupou os espaços e, freqüentemente, impõe o terror a essas comunidades? Porque o Estado não está lá – e quando está, está fraco ou com políticas incompetentes e marcadas pela corrupção. Essas comunidades pobres ficam entre uma polícia incompetente e violenta e o terror dos bandidos. Às vezes, é da polícia que se tem mais medo, porque o traficante frequentemente tem vínculos com a comunidade.

 

Mas nesse quadro não se pode esquecer também que o policial, assim como os agentes penitenciários de São Paulo mais recentemente, tornaram-se alvo dos bandidos. Até que ponto isso não deixa inseguro quem tem de zelar pela segurança do cidadão?

Os recentes acontecimentos de São Paulo ainda não foram suficientemente analisados e discutidos. De qualquer forma, é preciso que a população recupere com urgência a confiança e o respeito pela polícia. Os relatos de que o policial esconde a identidade no sapato e que a mulher do PM, que mora na favela, seca a farda do marido atrás da geladeira para que não saibam quem ele é, são antigos e reveladores da absoluta desconfiança e desrespeito pelo policial neste país. Mais recentemente, os policiais e agentes penitenciários passaram, também, a ser alvo de bandidos. É bom ressaltar que, embora grande parte dos policiais e dos profissionais que atuam nos sistemas penitenciários sejam honestos e comprometidos com seu trabalho, infelizmente há um número considerável que se envolve com a violência e a corrupção. A falta de confiança na polícia traz problemas de toda ordem para a segurança pública. No Rio de Janeiro, por exemplo, 90% dos roubos não são comunicados à polícia, e isto acontece porque a única coisa que todo mundo registra na delegacia é furto e roubo de carro, para buscar o reembolso do seguro. Nos outros casos, há uma crença generalizada de que a polícia é incompetente, ineficiente e corrupta e que não vale a pena registrar um crime.

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