‘O problema não é a droga. O problema é a pobreza e o desamparo’, diz socióloga a favor da legalização

Fernanda Canofre

Julho foi um mês quente para a pauta da legalização da maconha no Brasil. Logo no início, o PPS ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5708) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que a descriminalização da planta para fins medicinais seja avaliada no mérito. O partido diz que a falta de legislação a respeito tem feito com que pessoas que precisam da maconha para tratamentos de saúde tenham que recorrer “à ilegalidade”.

A proposta de um cidadão de São Paulo, no portal eletrônico do Senado Federal, para descriminalização do uso recreativo da maconha colocou o assunto de volta na pauta do Congresso Nacional. Em três dias, a proposta reuniu 20 mil assinaturas de apoio. O que faz com que ele passe a ser estudado por um dos senadores e discutido em comissões especiais mais uma vez. Entre os argumentos a favor da legalização estão aumento da arrecadação (já que a maconha poderia ser tributada) e a diminuição do tráfico, a partir do momento em que ele perderia mercado.

Somado a isso, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, o primeiro medicamento à base de maconha – Mevatyl – também está prestes a chegar às farmácias e deve custar em torno de R$ 2.837,40. Com recomendações para tratamento de adultos com esclerose múltipla e espasticidade, a embalagem deve conter três frascos de 10 ml cada. A liberação do medicamento, que contém THC (tetra-hidrocanabinol) e CBD (canabidiol) foi aprovada em janeiro pela Anvisa.

Enquanto a pauta esquenta – e a guerra às drogas vira guerra civil com o anúncio de que as Forças Armadas atuarão junto às polícias estaduais até o final de 2018 para combater o tráfico -, a socióloga  Até metade de julho, ela esteve nos Estado Unidos trabalhando junto a Carl Hart, professor e psicólogo da Universidade de Columbia, que se tornou um dos pesquisadores de referência sobre abuso e vício em drogas hoje no mundo.

Coordenadora do Centro de Estudos em Segurança Pública da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, Julita já ocupou cargos como diretora geral do sistema penitenciário do Rio e integrante do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Prisionais do governo federal e é membro do Consórcio Internacional sobre Políticas de Drogas (IDPC). Ela conversou com o Sul21 sobre como as movimentações recentes jogam no tabuleiro do debate sobre as drogas daqui pra frente no Brasil.

“Os maiores freios ainda são o desconhecimento e os interesses econômicos” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Em julho, a questão da descriminalização da maconha voltou à pauta no Brasil. Primeiro pelo pedido do PPS no STF, quanto ao uso medicinal, depois por uma sugestão de um cidadão no site do Senado, para uso recreativo. Achas que isso significa que estamos conseguindo romper o estigma?

Julita Lemgruber: Eu acho que tudo isso, claramente, é um trabalho da mídia. Acho que a mídia contribuiu bastante. Canais de televisão de ampla audiência cobrindo essa questão da cannabis medicinal. Acho que assim como nos Estados Unidos, o que vai abrir a porta aqui, que abre uma discussão de forma menos preconceituosa e menos raivosa é o fato de que a mídia vem dando destaque a essas vantagens da maconha medicinal, ao uso como medicamento em vários casos. Eu acho que está começando a se falar como a cannabis medicinal é um caminho para várias patologias. Acho que isso está abrindo portas.

Sul21: Quais seriam os maiores freios para que se avance nesta pauta?

Julita Lemgruber: Acho que os maiores freios ainda são o desconhecimento e os interesses econômicos, nessa estratégia de internação compulsória, de toda essa coisa de comunidades terapêuticas, tudo isso que o Osmar Terra (PMDB, ministro do Desenvolvimento Agrário e Social de Michel Temer) defende. Acho que de um lado a gente está rompendo as barreiras do preconceito, da ignorância – não ignorância no sentido pejorativo, mas no sentido mesmo de ausência de informação. Agora, a gente tem um inimigo muito poderoso que são os interesses econômicos que essas pessoas defendem, com uma postura absolutamente hipócrita, como é o caso do Osmar Terra. Ele fala muito desse estudo que fizeram no Rio Grande do Sul sobre os acidentes de trânsito. Ele diz “não, está muito claro que a maconha é responsável por parte dos acidentes”. Sabe, isso é de uma hipocrisia, de uma falta com a verdade. O que o estudo mostra é que, justamente nos casos em que há vítimas fatais, a droga que foi usada foi o álcool. Não foi a maconha. Então, é desonestidade. O Osmar Terra, porque defende essas comunidades terapêuticas, acaba agindo com desonestidade.

Sul21: Falando nele, que é um ministro, e como alguém que ocupou postos dentro do serviço público, como vês o papel do Estado nesse debate?

Julita Lemgruber: É evidente que o Estado, pelo poder de contratar verbas bastante grandes, pode empurrar esse debate e toda essa estratégia para um lado e para o outro, né? Isso a gente viu recentemente no governo Dilma (PT). Durante vários anos do governo Dilma o que se colocou na rua foi aquele programa “Crack, é possível vencer”, que foi um dos grandes equívocos que a gente teve nos últimos anos, em vez de encarar que a questão do crack resulta das condições de poder. Porque gente rica também usa crack, mas não está na rua. Essas pessoas que chamam a atenção são pessoas que estão em condição de vulnerabilidade, que estão na rua. O Carl Hart sempre insiste: o problema não é a droga. O problema é a pobreza. O problema é o desamparo. O problema é essa situação de absoluta vulnerabilidade dessas populações. O Carl Hart investe muito nisso sempre. O problema não é o uso da droga, mas o abuso da droga. O abuso da droga vai acontecer quando esse usuário não tem formas de gratificação que deem aquele prazer que a droga proporciona. Essa é a questão. Da Amy Winehouse aos miseráveis da Cracolândia em São Paulo, houve momentos em que essas pessoas só encontraram na droga algum prazer. E aí acabam indo para o abuso. Há inúmeras pesquisas que mostram que apenas 9% dos usuários de maconha se tornam usuários abusivos. Os outros 91% usam maconha de forma recreacional e de forma absolutamente social como a maior parte dos que tomam uma caipirinha.

“Isso faz parte da história da humanidade, nós não vamos viver em um mundo sem drogas. Então, vamos viver num mundo com drogas, mas vamos regular esse mercado” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Tu preferes o termo descriminalização ou legalização? Qual a proposta acreditas que seria a melhor hoje para o Brasil?

Julita Lemgruber: Descriminalizar é para o uso. Portugal, por exemplo, descriminalizou todas as drogas. O que eu defendo é legalização com regulação, de todas as drogas. Defendo realmente que a gente possa caminhar para uma sociedade que reconhece o seu uso de drogas. Isso faz parte da história da humanidade, nós não vamos viver em um mundo sem drogas. Então, vamos viver num mundo com drogas, mas vamos regular esse mercado para que a gente possa investir nos cuidados para aqueles que abusam das drogas. Só assim a gente vai conseguir cuidar daqueles que precisam de uma política de drogas, ter um pouco mais de racionalidade no uso em pontos públicos e não ficar apostando em uma guerra inumana, inglória, falida, que provoca muito mais males do que qualquer droga é capaz.

Sul21: Falando nesta guerra, a Lei de Drogas completou 10 anos em 2016. Qual a tua avaliação sobre ela?

Julita Lemgruber: Eu acho que o resultado da Lei de Drogas, que num primeiro momento muita gente acreditava que fosse um avanço, é esse que a gente tem: explosão no número de presos por tráfico. Estamos caminhando para uma situação de encarceramento em massa que não vai nos levar a lugar algum. Na lei, a pena de prisão por tráfico que era de 3 anos passou para 5 anos, com essa proposta de que o uso não levaria à pena de prisão. Mas o que a gente sabe é que essa lei deixa muitas brechas e é nessas brechas que atuam o Ministério Público conservador e o Judiciário conservador, que acabam por se aproveitar e criminalizar o jovem negro, pobre, que carrega uma pequena quantidade de drogas. É um ilusão achar que essa lei, à luz dos seus 10 anos, chegou a qualquer tipo de avanço.

Sul21: O fato de a lei não determinar quantidade que diferencia usuários de traficantes e deixar isso à interpretação do policial que faz a apreensão foi um dos erros?

Julita Lemgruber: Pois é. Quando a gente olha para o sistema de justiça criminal costuma pensar que quem tem mais poder nele é o Judiciário, mas quem tem mais poder no sistema criminal é a polícia. Não é só em relação ao tráfico, mas em relação a qualquer modalidade, qualquer crime. Quem vai indiciar ou não é a polícia. A polícia realmente tem um poder enorme, nessa área do tráfico de drogas isso se mostra ainda mais.

“Você tem uma lei equivocada, uma polícia que trabalha nas brechas dessa lei” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: A senhora foi a primeira mulher a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Como é lidar com a droga neste contexto?

Julita Lemgruber: Essa lei foi o caso de uma legislação que provocou o aumento do número de presos. Um número que cresce a cada dia. O cenário de mulheres é ainda mais assustador. Quase 70% das mulheres presas hoje é por causa do tráfico de drogas. Isso é um escândalo! Em qualquer país do mundo isso seria um escândalo. E isso é feito pelo Estado, as pessoas convivem com isso, ninguém para pensar que a maior parte dessas presas são mães. São mulheres que, por acaso, estavam cuidando do local onde estavam as drogas. Inúmeras pesquisas já demonstraram que as mulheres que são lideranças do tráfico hoje no Brasil não enchem os dedos de uma mão. Quando a polícia vem, elas nunca têm dinheiro para pagar o suborno, porque, na verdade, elas têm uma posição que é tão subalterna, é tão desimportante, que ela não tem grana, nem moral pra negociar com a polícia. E aí…Claro, que tem outras razões pelas quais as mulheres estão buscando isso também. A situação do país, a pressão sobre essas mulheres que são chefes de família. Você tem uma lei equivocada, uma polícia que trabalha nas brechas dessa lei…A gente fez uma pesquisa aqui no Rio, 95% dos casos de pessoas acusadas por tráfico de drogas aqui foram pegas na rua. Então, não há nenhuma investigação da polícia. E praticamente em 90% dos casos a única testemunha foi o policial militar. Então, você ainda tem esse problema. Essa coisa do direito de defesa, do contraditório, não tem nada disso. O policial militar que vai lá e fala e aí é a palavra do sujeito contra a palavra do policial militar.

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Sul21: Depois de quatro anos de aprovação da lei e discussões, o Uruguai começou a vender na semana passada maconha nas suas farmácias. A experiência deles pode servir como um laboratório para nós? Como tens acompanhado e visto a situação?

Julita Lemgruber: Acho que certamente a experiência do Uruguai é laboratório. Primeiramente, porque é uma experiência controlada pelo Estado. Muito diferente do que acontece nos Estados Unidos. Mesmo em casos como no estado de Washington, por exemplo, o segundo a legalizar a maconha, ali há uma série de regulamentações muito rígidas. Diferente do Colorado. Então, você tem estratégias diferentes, em diferentes estados. De qualquer forma, é uma aposta no livre mercado. No caso do Uruguai é uma estratégia absolutamente controlada pelo Estado. O Estado cedeu o terreno onde se planta a maconha, o Estado produziu sementes. A situação do Uruguai onde o Estado forneceu as sementes para que as pessoas plantassem a própria maconha é uma situação diferente do que trazer as sementes da Holanda. A legalização da maconha no Uruguai vem passando por estágios de muitos anos, todos com o controle do Estado. Eu acho que isso é uma experiência interessante de se observar e para comparar com a experiência dos Estados Unidos, enquanto a gente vai caminhando aqui para encontrar o nosso modo de fazer as coisas.

”A legalização da maconha no Uruguai vem passando por estágios de muitos anos, todos com o controle do Estado. Eu acho que isso é uma experiência interessante” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Entre as duas formas, qual seria a mais adequada ao contexto brasileiro?

Julita Lemgruber: Eu acho que a estratégia que tem o Estado, em um determinado momento, quebra mais resistências. É bom ser uma coisa que não estivesse na mão do mercado. Mas acho que paralelo a isso tem muitas coisas interessantes no modelo do Uruguai, como os clubes de cannabis, as autorizações para uso pessoal, poder plantar sua própria planta. Acho que tem que se observar e acho que a gente vai encontrar nosso caminho convocando o melhor dessas experiências.

Sul21: A senhor passou dois meses nos Estados Unidos acompanhando o trabalho de Carl Hart (professor e psicólogo da Universidade de Columbia), um dos pesquisadores de referência sobre abuso e vício em drogas hoje no mundo. Pode falar um pouco sobre essa experiência?

Julita Lemgruber: Esse tempo que eu passei lá foi mais do que  apenas observando o trabalho do Carl Hart. Eu passei lá esse tempo discutindo um projeto com ele para estimar o custo da guerra às drogas. Isso se conseguirmos financiamento, etc e tal. Eu coordenaria aqui um time, ele outro lá nos Estados Unidos. A ideia é calcular desde os custos em termos de vidas perdidas, todo o impacto, até a questão das escolas que não abrem, postos de saúde que não abrem, o uso das forças de segurança. Isso tudo tem um custo que a gente quer avaliar.

Sul21: Diante do cenário de violência instaurado, superlotação do sistema penitenciário, parece que já vivemos o caos e nos habituamos a ele. Se o Brasil não avançar nessa pauta, o que resta?

Julita Lemgruber: Acho que a gente está apostando no agravamento dessa situação, porque se não tiver a coragem de enfrentar com seriedade a questão das drogas, a gente está quase… Por exemplo, estou olhando aqui o [Raul] Jungmann [ministro da Defesa], o ministro que esteve aqui esta semana discutindo um plano para o Rio de Janeiro. E ele fala abertamente que vai começar uma guerra. Ele acha que colocando o Exército para lidar com a situação vai ter uma reação do tráfico e está apostando na guerra.

“A gente está apostando no agravamento dessa situação, se não tiver a coragem de enfrentar com seriedade a questão das drogas” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

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