Transferência de controle da segurança pública do Rio de Janeiro para as Forças Armadas completou dois meses. Segundo pesquisadores, política, e não alta da violência, motivou intervenção
No dia 16 de fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer decretou uma intervenção federal no setor de Segurança do Rio de Janeiro prevista para ao menos até o final do ano. O general do Exército e chefe do Comando Militar do Leste, Walter Souza Braga Netto, assumiu o lugar do secretário de segurança, Roberto Sá, que pediu para deixar o cargo no mesmo dia.
Nos últimos anos, o estado já vinha recorrendo rotineiramente às Forças Armadas e outras forças de segurança sob controle do governo federal, empregadas como reforço para manter a ordem em eventos como eleições e competições internacionais.
Mas a transferência do controle da segurança pública do estado, governado por Luiz Fernando Pezão (MDB), para as Forças Armadas foi inédita. Ela não fora antecipada pela imprensa ou por quem pesquisa o assunto, apesar de os indicadores de violência apresentarem tendência de piora nos últimos anos.
Em resposta, pesquisadores e entidades da sociedade civil criaram o Observatório da Intervenção. Coordenado pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Candido Mendes, ele se dedica à coleta de dados e elaboração de análises sobre como a intervenção tem se dado.
O grupo tem participação de entidades como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, além de militantes ligados a comunidades. Após mais de dois meses do início da intervenção, o Observatório divulgou um relatório, publicado na quinta-feira (26), no qual indica a quais conclusões chegou até o momento.

CHEFE DO GABINETE DE INTERVENÇÃO FEDERAL, GENERAL MAURO SINOTT, EM INSPEÇÃO A UNIDADE DA POLÍCIA MILITAR, EM MARÇO DE 2018 | FOTO: TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL

1. Política, e não alta da violência, motivou intervenção
Segundo o relatório, a intervenção foi essencialmente uma medida para fortalecer o governo de Michel Temer no país e no estado, onde seu partido, o MDB, “enfrenta profunda crise”.
No período em que a intervenção foi anunciada, o governo vinha buscando levar à votação uma emenda constitucional que reformaria a Previdência, que reduziria benefícios. Essa era uma das principais medidas anunciadas pelo governo Temer, mas tinha, no entanto, altas chances de ser rejeitada pelo Congresso.
A análise ressalta que a Constituição impede que se votem propostas de emenda constitucional durante períodos de intervenção federal sobre estados, e dá a entender que a medida pode ter sido uma forma de o governo se esquivar de uma possível derrota.

TEMER E PEZÃO EM EVENTO DE ASSINATURA DO DECRETO DE INTERVENÇÃO | FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS

“Foi uma medida política, focada na agenda do Planalto, que estava em um beco sem saída e não conseguia escapar da votação da Previdência. Estamos a poucos meses do processo eleitoral”, afirma em entrevista ao Nexo a pesquisadora do CESeC Silvia Ramos, que coordenou o relatório.
O documento reconhece que o estado tem sofrido com tendência de alta acelerada de número de crimes desde 2016, mas destaca que houve recentemente períodos piores em se tratando de taxa de homicídios, sem que houvesse intervenção federal.
O Rio de Janeiro fica em 11º lugar em taxa de homicídios quando comparado às outras unidades da federação, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017. “No Rio, a taxa é de 37,6 [homicídios por ano] para cada 100 mil habitantes, contra 60 por 100 mil em Sergipe”, afirma o relatório. O trabalho destaca ainda que essa criminalidade se distribui de forma desigual. A Baixada Fluminense tem uma taxa de homicídios que corresponde ao dobro daquela da cidade do Rio de Janeiro.
O número de roubos tem, no entanto, realmente batido recordes.
HOMICÍDIOS E ROUBOS POR ANO

Nexo 27/04/2018

O relatório informa o custo da intervenção no Rio de Janeiro: R$ 3,1 bilhões. Desse valor, R$ 1,6 bilhão é destinado a quitar dívidas da área de segurança em 2016, e outro R$ 1,5 bilhão é destinado para ações e despesas de 2018.
Segundo o Observatório, o número é alto, especialmente quando se considera que o Rio de Janeiro já gasta muito com segurança pública.
“Note-se que o Rio de Janeiro
já é o segundo estado em
termos de investimento per
capita em segurança pública,
superado apenas por
Roraima. Segundo dados do
Anuário do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, em
2016 o Rio de Janeiro gastou
no setor R$ 550 por habitante;
São Paulo investiu R$ 245;
Minas Gerais, R$ 423.”
Relatório ‘Intervenção no Rio’, do
Observatório da Intervenção
2. Percepção de violência é forte e população apoia intervenção
Apesar de a taxa de homicídios não ser particularmente alta quando comparada a outros momentos dos últimos dez anos, o relatório avalia que a forte alta de roubos pode ter contribuído para a percepção de que a violência está fora de controle.
“O aumento dos roubos impacta a atividade econômica e influi sobre a percepção de segurança da população. Um grande número desses crimes costuma ser interpretado como sinal de que as ruas estão entregues aos criminosos”, afirma o trabalho.
O carnaval, que ocorreu na semana anterior à intervenção, não foi marcado por níveis especialmente altos de ocorrências policiais na capital do estado, quando comparado com outros anos.
Mas, na avaliação do relatório, o tratamento e o destaque dado pela imprensa a determinados eventos criminosos contribuiu para criar um clima de pânico que teria sido usado politicamente para justificar a intervenção.
“Os telejornais apresentaram com destaque cenas de roubos em massa na orla e de um saque a um supermercado no bem policiado bairro do Leblon, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro”, afirma o documento.
Em março, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizou uma pesquisa em parceria com o Instituto Datafolha sobre o medo da população do Rio de Janeiro de se tornar vítima de crimes.
30%
Dos moradores afirmaram que
estiveram em meio a fogo cruzado nos
12 meses anteriores à pesquisa. Dentre
moradores de comunidades, a
proporção foi de 37%
92%
Afirmaram que têm medo de se ver em meio
a um tiroteio entre policiais
e criminosos
92%
Afirmaram que têm medo de serem
feridos ou morrer em um assalto
87%
Têm medo de serem assassinados
84%
Têm medo de ter suas casas invadidas
ou roubadas
70%
Têm medo de sofrer violência
da Polícia Militar

Segundo o trabalho, esse medo compartilhado da violência contribui para que a maior parte da população do Rio de Janeiro veja a intervenção com bons olhos.
Outro fator destacado é o fracasso da política das Unidades de Polícia Pacificadora. Elas tinham como princípio o estabelecimento de um policiamento menos truculento e mais próximo da população, mas tiveram problemas em sua implementação na prática e atualmente sofrem com corte de verbas e retirada de policiais.
Além disso, a falência financeira do estado e a instabilidade política, marcada pela prisão de políticos importantes e do governador do estado, Sérgio Cabral (MDB), condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, também são listados como fatores para esse apoio à intervenção.

SOLDADOS FAZEM PATRULHA NO BAIRRO DE BOTAFOGO, RIO DE JANEIRO | FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS – 03.04.2018

“Nas áreas mais inseguras, moradores acreditam que forças não corrompidas assumirão o controle da segurança, trazendo ordem e progresso a comunidades violentadas pela violência, mortes, extorsão e assaltos”, diz o trabalho.
Ainda segundo o relatório, o perigo é que esse medo e descrença na forma como as instituições têm sido conduzidas se transformem em apoio a políticas oficiais de suspensão de direitos. “A intervenção transmite à população a ideia de que problemas de criminalidade se resolvem com políticas duras”, afirma Silvia Ramos.
A pesquisadora também destaca que, da forma como tem sido conduzida, a intervenção tem o efeito colateral de dar visibilidade e poder político a militares. “Quem está no governo é o comandante militar do Leste. Poderia ser um civil, mas os militares das Forças Armadas foram colocados no centro da cena política”, afirma.
3. Ações são as mesmas de sempre
Segundo o relatório, a intervenção não apresentou um plano estruturado desde o início. Em entrevista coletiva durante a cerimônia de assinatura do decreto presidencial da intervenção sob seu comando, o general Braga Netto afirmou:
“Vamos entrar numa fase de planejamento. No momento, eu não tenho nada que possa adiantar para os senhores. Vamos fazer um estudo e a nossa intenção é fortalecer o sistema de segurança no Rio de Janeiro.”
Segundo o relatório, “esses objetivos permanecem obscuros”. O trabalho destaca que, ao contrário do que ocorreu no Complexo do Alemão em 2010 e no Complexo da Maré, em 2015, a intervenção não tem sido marcada por ocupações massivas pelas Forças Armadas. Mas há informações sobre dezenas de operações pontuais.
Para contabilizá-las, o Observatório acompanhou relatos de jornais, informações do aplicativo Fogo Cruzado e da rede DefeZap, assim como de pessoas e instituições parceiras com presença em diversas áreas do Rio de Janeiro.
70
Operações policiais ocorreram nos dois
meses de intervenção. Dessas, 32 foram
realizadas pela Polícia Militar, 22 pelas
Forças Armadas, 22 pela Polícia Civil
e o resto por outras forças de segurança

Há dados sobre o efetivo usado em apenas 25 dessas operações, que usaram no total 44.024 agentes.
Foram apreendidas 77 pistolas, 42 fuzis, 20 revólveres e uma espingarda, um número que o relatório classifica como baixo, dado o tamanho do efetivo empregado.
Na avaliação do trabalho, não há indícios de que essas operações tenham sido realizadas seguindo algum tipo de objetivo coordenado, ou que tenham rompido com práticas violentas que são frequentes nas ações das forças de segurança no Rio. “Cada comandante manda na sua área e resolve quando eles podem atirar e em que hora vão parar”, diz Silvia Ramos.
Ela também enxerga uma certa ênfase em ações contra roubos de cargas. “Os empresários estão fazendo muita força para orientar em relação ao roubo de cargas. Mas achamos que vida é mais importante.”
Pelo menos 25 pessoas foram mortas nas operações das forças de segurança, que têm matado mais nos últimos anos no Rio de Janeiro. O comando “parece deixar que as polícias ‘façam seu trabalho’, sem orientações definidas de buscar a preservação da vida, sem metas”, diz o relatório.

MILITARES DO EXÉRCITO FAZEM REVISTA EM MORADORES EM FAVELA DO RIO | FOTO: TÂNIA RÊGO/AG. BRASIL – 23.02.2018

Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro compilados pelo Nexo, as polícias mataram em fevereiro e março de 2018 o maior número de pessoas para o período desde 2008.
“Essa é a marca traumática da política de segurança no Rio de Janeiro: uma polícia que sempre teve problemas de atirar muito e investigar pouco”, diz Ramos. Na opinião da pesquisadora, a intervenção não tem buscado mudar esse quadro.
“A princípio o [ministro da
Justiça] Torquato Jardim
disse que o maior problema
era que a maior parte da
polícia é corrupta. Em dois
meses de intervenção não
teve nenhum gesto de
afastamento ou aumento de
investigação. Nem
comandantes dos batalhões
mais problemáticos foram
alterados.”
Silvia Ramos
Pesquisadora do CESeC e coordenadora do
relatório do Observatório da Intervenção, em
entrevista ao Nexo
MORTES POR ANO E EM FEVEREIRO E MARÇO DE CADA ANO

Nexo 27/04/2018

4. Indicadores dão poucos sinais de melhora
Até o momento, a intervenção não resultou em uma redução marcante da criminalidade. Segundo dados da plataforma Fogo Cruzado, que documenta relatos de violência na cidade do Rio e na Região Metropolitana:
1.502
Tiroteios foram registrados entre 16 de
fevereiro e 15 de abril. Eles produziram
284 mortos e 193 feridos. Nos dois
meses anteriores, de 16 de dezembro a
15 de fevereiro, haviam ocorrido 1.299
tiroteios – o relatório não
informa o número de pessoas mortas
12
Chacinas com 52 vítimas ocorreram
entre 16 de fevereiro e 15 de abril. No
mesmo período de 2017 haviam
ocorrido seis chacinas, com 27 mortos –
o relatório não traz dados dos dois
meses anteriores à intervenção.

CENA DO CRIME CONTRA A VEREADORA MARIELLE FRANCO E O MOTORISTA ANDERSON GOMES | FOTO: RICARDO MORAES/REUTERS

Segundo o documento, “a existência de vítimas múltiplas em episódios de intervenção policial e de confronto de facções criminosas pode estar se tornando uma marca deste novo momento do Rio sob intervenção”.
O Nexo compilou os dados sobre homicídios e roubos registrados pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro relativos aos períodos de fevereiro e março de 2018, e os comparou com os números do mesmo período de anos anteriores.
Houve menos homicídios em 2018 nessa comparação, suspendendo a tendência de aumento dos anos recentes. Mas roubos atingiram patamares especialmente altos.
HOMICÍDIOS E ROUBOS NOS MESES DE FEVEREIRO E MARÇO

“O problema da intervenção
não são só os indicadores,
mas o governo usando essa
política como uma espécie de
modelo da segurança pública.
E para fazer as mesmas
coisas: confrontos, tolerância
com a violência e com a
corrupção policial. Mesmo se
os indicadores melhorarem,
a intervenção traz problemas.”
Silvia Ramos
Coordenadora do CESeC, em
entrevista ao Nexo