Familiares negros e pobres de pessoas desaparecidas são os que mais sofrem com falhas no atendimento e na investigação no Rio, aponta estudo

Márcia Cristina França de Albuquerque, mãe de Jowayner, que está desaparecido há nove anos — Foto: Hermes de Paula / Agencia O Globo

Estudo realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) aponta que problemas já começam na hora de fazer o registro na delegacia

No dia 9 de janeiro de 2015, a menina Vitória Nunes Barcelos dos Santos, na época com 3 anos, sumiu da porta de uma igreja em Benfica, na Zona Norte, onde tinha ido com a mãe Flávia Nunes Barcelos, de 37, para assistir um culto evangélico. O desaparecimento ocorreu num curto espaço de tempo em que a mulher se afastou da filha para buscar um copo de água para a garota. Foi o início de uma busca que dura até hoje. A primeira dificuldade foi fazer o registro na delegacia, onde pediram que ela voltasse no dia seguinte, depois que completasse 24 do sumiço da criança, apesar de, desde 2005, já existir uma lei determinando que essa busca seja imediata, até porque cada minuto pode fazer diferença. No caso de Márcia Cristina França de Albuquerque, de 57, moradora em Campo Grande, na Zona Oeste, o descaso na delegacia do bairro foi tão grande que ela só conseguiu registrar o boletim de ocorrência sete após o desaparecimento do filho Jowayner Athayde de Albuquerque Júnior, em 2013. Na época ele tinha 16 anos.

Os casos como os dessas mães não são únicos. O estudo “Teia de ausências: o percurso institucional dos familiares de pessoas desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro”, que o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) está lançando nesta quinta-feira e no qual mapeia a vivência de familiares de desaparecidos, conclui que familiares negros e pobres de pessoas desaparecidas são os que mais sofrem com falhas no atendimento e na investigação no Rio de Janeiro. O levantamento mostra que muitas vezes os problemas já começam na hora de fazer o registro na delegacia, como aconteceu com Flávia e Márcia.

—A dificuldade já começa na hora de fazer o registro na delegacia, porque apesar de já existir uma lei que determina que a busca seja imediata, ela não é cumprida. No meu caso, por exemplo, eu procurei a delegacia imediatamente, mas pediram que eu voltasse para casa e esperasse completar 24 horas do desaparecimento. E o pior é que isso acontece até hoje e pode dificultar as buscas — afirma a mãe, acrescentando que por morar em Benfica, perto de onde está localizada a única delegacia especializada em busca de paradeiros do estado estaria em situação de vantagem em relação à pessoas que moram em outras cidades e não podem contar com esse serviço.

Para elaborar o estudo do Cesec os pesquisadores refizeram o mesmo percurso institucional traçados pelos familiares de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro. A intenção era entender o que torna árdua essa caminhada em busca de respostas e soluções por esses familiares e, principalmente, quando são pobres, negros e oriundos das periferias. Para a pesquisa foram entrevistados profissionais que trabalham nos diversos órgãos públicos atuantes na área e mães de pessoas desaparecidas que dirigem ONGs e lutam pela melhoria do suporte institucional tanto de acolhimento e orientação dos familiares quanto de prevenção e resolução dos mais de 5 mil desaparecimentos registrados anualmente no estado.

A conclusão é de que as dificuldades vão desde a desobediência à “lei da busca imediata”, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente para determinar que as investigações do desaparecimento de menores de idade fossem iniciadas imediatamente após notificação aos órgãos competentes, a agentes que deslegitimam familiares e suas histórias baseadas em estereótipos, como no caso de adolescentes, se é menina, foi atrás de namorado; se é menino, está na boca de fumo e, portanto, vai reaparecer em questão de tempo. Foi o que aconteceu com Márcia.

— Fui na delegacia e me mandaram procurar primeiro nos hospitais e no IML e depois voltar lá para ver se eles podiam fazer alguma coisa. Como queria meu filho de volta fiz isso. Depois voltei e me atenderam agressivamente e disseram que ele poderia estar numa favela e que ia aparecer— recordou a mãe, que desesperada correu atrás de testemunhas por conta própria e só conseguiu fazer o registro uma semana depois.

Outro problema enfrentado pelas famílias de desaparecidos é, por exemplo, a existência de uma única delegacia especializada em todo o estado — a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA), localizada na Cidade da Polícia, no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, unidade que abrange apenas a capital, deixando de investigar mais de 55% das ocorrências do estado. Isso sem considerar que juntos os municípios da Baixada Fluminense e as cidades de São Gonçalo e Niterói, tenham registrado na última década 38% dos desaparecimentos no território fluminense e 46% dos da Região Metropolitana. No mesmo período, o Brasil registrou um milhão de casos de pessoas desaparecidas, sendo 50 mil apenas no Rio de Janeiro, aponta o estudo.

Soma-se a isso também a concentração geográfica dos poucos serviços disponíveis de assistência social, psicológica e jurídica, passando por atendimentos desumanizadores, baseados em estereótipos e preconceitos Isso faz com que muitas vezes, as próprias mães tomem a rédea da situação. Foi o que fez Luciene Pimenta Torres, cuja filha Luciane Torres da Silva, está desaparecida desde o dia 30 de agosto de 2009, depois de ter saído de casa para comprar pão. Os relatos dão conta de que a menina, que tinha 9 anos na época foi vista na garupa da bicicleta de um homem. Um acusado pelo rapto chegou a ser preso, mas foi posto em liberdade menos de um ano depois por faltas de provas e sob o argumento de que testemunhas teriam confundido o acusado, que é branco, com o verdadeiro criminoso, que seria negro.

Luciene transformou sua dor em luta. Em 2012 concluiu que era o momento de fazer alguma coisa para ajudar outras pessoas na mesma situação e fundou o Instituto Mães Virtuosas do Brasil. Munidos de faixas, cartazes e banners com fotos dos desaparecidos, o grupo de se reúne periodicamente em locais públicos para dividir as dores e divulgar seus casos particulares, para tentar apoio da população e das autoridades. Os encontros mensais, que estavam suspensos por conta da pandemia, voltaram a acontecer a partir desta quinta-feira na escadaria da Câmara Municipal do Rio, na Cinelândia, das 10h às 15h. Esse trabalho de formiguinha já ajudou a localizar sete desaparecidos, o último na semana passada.

— Resolvi criar o Mães Virtuosas por conta da minha luta em busca da minha filha, mas também pelo descaso do poder público e conhecendo outras mães que passavam pelas mesmas dificuldades que eu. Minha filha sumiu na Baixada Fluminense, no Km 32. A gente vai buscando um amparo que não encontra — reclamou a mãe, que se queixou ainda da falta de apoio na delegacia de Comendador Soares onde fez o registro de ocorrência.

A pesquisadora Paula Napoleão, diz que a falta de mais unidades especializadas leva as famílias de desaparecidos a buscar ajuda nas distritais ou delegacias de homicídios, que têm um setor específico para desaparecimentos. Mas, nestes locais, se deparam muitas vezes com policiais que acreditam que esses casos não são assunto de polícia, que deve se concentrar nos homicídios e outras questões consideradas prioritárias. Esse tipo de problema aliado ao vácuo de políticas públicas, apesar de existirem boas iniciativas, faz com que muitas mães se organizem em movimentos, ONGs ou coletivos para buscar por conta própria uma solução para o problema. Foi o que fez Márcia, que buscou apoio na ONG Mães Braços Fortes.

—A pesquisa identificou um vácuo em termos de políticas públicas. A gente tem boas iniciativas, mas que não conseguem alcançar essas famílias pobres e negras, porque elas concentram a sua atuação em determinados pontos da cidade e isso impede que essas famílias tenham acesso e o resultado disso é que além do sofrimento causado pelo desaparecimento de um familiar, de um ente, essas pessoas ainda precisam lidar com a ausência de todo o tipo suporte. Elas não têm um suporte psicológico, financeiro ou jurídico. Elas não têm atendimento adequado. Essa ausência de políticas públicas especializadas é um vácuo muito grande nesse campo. É essencial que existam políticas públicas que sejam formuladas a partir da visão das pessoas que mais sofrem com os desaparecimentos, que são esses familiares — aponta a pesquisadora.

Uma das boas iniciativas lançadas recentemente pela DDPA foi um “Alerta Pri”, que notifica o desaparecimento de crianças e adolescentes. A ferramenta que dispara um SMS com informações sobre a pessoa que está sumida para cerca de três milhões de telefones celulares ajudou a localizar 20 desaparecidos, de um total de 27 cadastrados, nos últimos dois meses.

O trabalho desenvolvido pelo SOS Crianças Desaparecidas da Fundação para a Infância e Adolescência (Fia) também tem dado bons resultados. Somente no passado, ajudou a localizar 156 dos 172 casos de desaparecidos cadastrados. De janeiro ao começo de maio desse ano, 130 casos foram cadastrados no sistema. Desses, 82 crianças foram localizadas com vida e outras 19 seguem desaparecidas. Nesta quarta-feira, a Fia lançou em parceria com a Defensoria Pública do estado uma cartilha que além de orientações sobre como agir nos casos de desaparecimento também dá dicas úteis de prevenção.

— Uma delas é tirar o documento de identidade da criança o quanto antes, porque com isso torna mais a localização em caso de desaparecimento — explica Fernanda Lessa, presidente da FIA/RJ.

O levantamento do Cesec abrangeu Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA); Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSG); Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF); Ministério Público; Defensoria Pública; Fundação para Infância e Adolescência (FIA); Superintendência de Prevenção e Enfrentamento ao Desaparecimento de Pessoas (SPEDP); Disque-Denúncia; organizações Mães Braços Fortes, Mães Virtuosas, Portal Kids e Mães da Sé. Esta última, que não é do Rio, entrou na pesquisa pela relevância do trabalho realizado.

Principais conclusões do estudo:

  • Levantamento mostra que descaso começa na hora do registro de ocorrência
  • Agentes de segurança que deveriam acolher deslegitimam os familiares e suas histórias baseados em estereótipos
  • Por desaparecimento não ser considerado crime, não é prioridade de investigação
  • Única delegacia especializada do estado fica longe das áreas com maiores números de registros, como a Zona Oeste do Rio, a Baixada e a região Niterói-São Gonçalo.
  • Apesar de policiais alegarem ser coisa de adolescente, 60,5% dos desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro têm 18 anos ou mais
  • Apenas nos últimos três anos, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), contabilizou 32 projetos de lei sobre o tema dos desaparecidos, mas a maior parte não saiu do papel.
  • Frente à negligência do Estado, coletivos de mães desempenham papel fundamental nas investigações e no suporte aos familiares

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