Uma “faixa de Gaza” separa Vigário Geral de Parada de Lucas
Os hotéis anunciam que estão lotados. O Rio de Janeiro recebeu 700 mil turistas para o carnaval. Nem as agressões, nem a descoberta, no final de dezembro, de cadáveres carbonizados perto do “Sambódromo”, onde desfilam as escolas de samba, nem a criminalidade em franca expansão os fizeram recuar.
“As reservas para a alta temporada costumam ser feitas com muita antecedência”, explica um hoteleiro. “Além disso, se comparado com outras regiões do mundo, o Brasil até que é bastante pacífico”.
Alguns turistas de maior poder aquisitivo tomaram a precaução de contratar seguranças (80 euros por hora, ou seja, R$ 266,78), e até mesmo de circular de carro blindado (535 euros – R$ 1.784,10).
Os morros cobertos por barracos transformaram o Rio numa cidade dividida entre as “favelas” e o “asfalto”. Em Ipanema ou em Copacabana, os hotéis oferecem uma visita turística, com guia, à favela da Rocinha, a qual chegou a ser visitada anos atrás pelo papa João Paulo 2º.
O folheto publicitário sublinha o caráter “instrutivo, em caso algum uma atividade de voyeur” da excursão, que é realizada “com toda segurança”. Fonte de cultura popular –principalmente do samba–, a favela urbanizou-se, conforme atesta a presença de caixas eletrônicos ou de lanchonetes McDonalds.
Contudo, a cocaína alterou sensivelmente essa situação. O faturamento que ela proporciona transformou por completo o crime organizado e a psicologia dos protagonistas deste comércio.
No passado, os “padrinhos” da loteria clandestina, o “jogo do bicho”, financiavam as escolas de samba e envelheciam tranquilamente. Mas, desde o advento dessa droga, os “soldados” que se dedicam à sua comercialização preferem levar uma vida breve e intensa a uma existência sem perspectivas.
O tráfico multiplicou os canais entre os traficantes da favela e os consumidores do “asfalto”. Uma vez que a maioria dos bairros residenciais fica exatamente ao lado dos morros, as “balas perdidas” das gangues, não raro, irrompem na vida dos moradores, através das janelas dos seus apartamentos.
Assim, a estreita fronteira entre a favela do Vigário Geral e a da Parada de Lucas é chamada de “faixa de Gaza”: encurralados entre as linhas de tiros dos bandos de narcotraficantes que fazem questão de marcar o seu território disparando as suas armas, os moradores desta área nela se sentem tão ameaçados quanto podem se sentir certas populações do Oriente Médio.
Em dezembro de 2004, a guerra alcançou o seu ápice entre as três facções que disputam entre si as 800 favelas do Rio: o “Comando Vermelho”, o “Terceiro Comando” e os “Amigos dos Amigos”.
A sua estrutura é inspirada na guerrilha urbana dos anos 60. As prisões, os telefones celulares e a corrupção das autoridades penitenciárias favoreceram a sua constituição num verdadeiro poder paralelo, capaz de obrigar áreas comerciais inteiras a fecharem as suas portas ou a pagarem em troca de “proteção”.
“A especificidade do Rio em relação a outras metrópoles ou regiões do Brasil se deve às confusões que sempre ocorrem entre os traficantes e a polícia militar (PM)”, explica Silvia Ramos, do Centro de Estudos sobre a Segurança e a Cidadania (CESeC), na universidade privada Candido Mendes.
O recrudescimento da violência com freqüência constitui um sinal de que houve um não-cumprimento dos acordos que haviam sido negociados entre uns e os outros. A corrupção alastrou-se por todos os níveis da polícia militar, a tal ponto que os policiais estão agora acostumados a receber uma “gorjeta” de R$ 1,00, no mínimo, “para o cafezinho”, antes de deixarem partir o automobilista que eles pararam.
A campanha de desarmamento que foi iniciada em julho de 2004 bateu um recorde no Rio de Janeiro, mas ela não teve uma real incidência sobre os assassinatos. Dos 50 mil homicídios que são cometidos anualmente no Brasil, a maior parte deve-se a motivos “fúteis”, a rixas ou a acertos de contas, que costumam ser perpetrados com a arma em punho, seja ela uma pistola ou um objeto contundente.
“Em contrapartida, no Rio, o volume dos homicídios explodiu com o tráfico dos fuzis de combate AK 47”, afirma Silvia Ramos.
O armamento dos traficantes inclui minas “assassinas” e obuses. Os itinerários da droga coincidem com os das armas e das munições, que as gangues utilizam sem qualquer moderação, como se o abastecimento fosse inesgotável.
“O consumo de cocaína no Rio não é tão intenso como na Europa ou nos Estados Unidos”, prossegue a pesquisadora. “O tráfico de armas e de drogas representa o lado sombrio da globalização”.
O CESeC é um dos raros organismos da sociedade civil que estejam efetivamente presentes no terreno da segurança urbana. “A guerra das gangues explodiu nas favelas onde houve uma maior quantidade de investimentos sociais, no Vidigal, em Vigário Geral, na Parada de Lucas, na Rocinha ou na Maré”, revela Silvia Ramos. “Foi justamente nesses lugares que várias iniciativas socioculturais louváveis estabeleceram conexões entre a favela e o asfalto”.
Contudo, os esforços das comunidades de moradores, ajudadas por Organizações Não-Governamentais (ONGs), logo encontraram os seus limites por causa da ausência de apoio por parte das políticas públicas.