‘Esse é um lado que nunca é ouvido, o de quem mora nas comunidades’
“Todo mundo do grupo conhece alguém que já morreu”, disse ao Nexo Mayara Donaria, 20 anos. “Eu já vi mortos na porta de casa, aquele sangue escorrendo.” Moradora da Favela da Maré, Donaria tem uma produtora de vídeo e se dedica a trabalhos de audiovisual e de eventos.
Formado por 15 jovens de diversas comunidades (quase todos no Grande Rio), o grupo a que Donaria se refere se chama Movimentos. Seu principal foco é debater e informar sobre a relação entre políticas de drogas e a violência de seu dia a dia. O projeto será lançado oficialmente no dia 2 de setembro, no Centro de Artes da Maré, no Rio de Janeiro.
A ideia é promover conversas em locais diversos, como associações de moradores, igrejas e escolas, tanto em comunidades pobres como em bairros de classe média. Como material de apoio, o grupo preparou uma cartilha chamada “Drogas, juventude e favela”. Inicialmente, serão impressas 1.000 cartilhas para distribuição nas áreas de atuação do grupo. Ela já está disponível no site do projeto.
“Esse é um lado que nunca é ouvido, o de quem mora nas comunidades”, explica ao Nexo Jefferson Barbosa, de Duque de Caxias, estudante de comunicação social e editor do Voz da Baixada, coletivo de mídia independente. “E o primeiro passo para a mudança é a gente falar sobre isso. O Estado não vai fazer isso.”
| O que diz a cartilha
O documento de 20 páginas foi escrito em linguagem simples e direta. Tem uma preocupação em desmistificar chavões sobre o tema ao mesmo tempo em que deixa aparente uma postura pró-legalização das drogas, citando países como Portugal e Uruguai como exemplos bem-sucedidos de abordagens alternativas à proibição. Os integrantes do grupo que conversaram com o Nexo confirmaram ser a favor da “legalização” e da “regulamentação” do comércio e uso de substâncias entorpecentes.

JOVENS DO MOVIMENTOS ESTUDARAM SOBRE A GEOPOLÍTICA DO TRÁFICO DE DROGAS | FOTO: DIVULGAÇÃO

A cartilha abre com a defesa de “uma nova política de drogas”, uma vez que a atual implicaria em uma “guerra” cujo palco principal é a favela. “Para nós, significa escolas fechadas, mudança na rotina, medo de sair de casa, preocupação extrema com o nosso bem-estar e o da nossa família. Em nome dessa guerra, o Estado justifica uma série de violações de direitos contra nós, jovens de favelas e periferias”, diz o texto.
O projeto lembra que o fracasso dessa abordagem é reconhecido em vários setores no país e fora. “Ao contrário, a guerra às drogas trouxe mais violência, corrupção e desigualdade do que se poderia imaginar.” O conteúdo traz ainda muitos dados sobre o consumo de drogas no Brasil e no mundo, hoje em dia e historicamente. Exemplos: hoje há 250 milhões de usuários de drogas no mundo e apenas 11% dessas pessoas “desenvolvem um uso problemático dessas substâncias” (dados da UNODC, agência das Nações Unidas de Drogas e Crime).
“A maioria dos presos e mortos na guerra às drogas é jovem, negra e moradora de favelas e periferias, o que mostra como essa política é seletiva”, afirma o texto, que explica ainda que esse tipo de abordagem não tem trazido a diminuição da criminalidade.
Talvez um dos maiores desafios para o Movimentos é que esse debate não encontra aceitação nas comunidades. Assim como entre a população brasileira em geral, a maior parte é contra a legalização das drogas. “As pessoas querem ficar o mais longe possível das drogas. A maioria pensa que se legalizar vai piorar”, admite Donaria. “Ao mesmo tempo, elas querem paz, não querem tiroteio. Só que não fazem o link que o motivo da violência é a ilegalidade das drogas”.
| Como os jovens se prepararam para discutir o assunto
O projeto surgiu no Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), instituição fundada em 2000 na Universidade Candido Mendes por especialistas na área de segurança pública. “Nossa ideia era colocar a favela como protagonista”, explicou ao Nexo a pesquisadora do Cesec, Ana Clara Telles, parte da equipe que criou o projeto.
Os jovens foram escolhidos de acordo com seu histórico de atuação como ativistas e articuladores nas comunidades em que moravam. Durante meses, eles frequentaram grupos de estudo e oficinas sobre temas como redução de danos, políticas de drogas, produção audiovisual, media training e efeitos das substâncias.
Também ouviram palestras com nomes como o psiquiatra Dartiu Xavier e o jornalista inglês Johann Hari, autor de “Chasing the Scream – The First and Last Days of the War On Drugs” (Perseguindo o Grito – Os Primeiros e Últimos Dias da Guerra às Drogas). “Passamos um ano estudando a questão das drogas”, explicou Barbosa.
Entre os quadros do Cesec, estão a coordenadora Julita Lemgruber, socióloga, ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-ouvidora de polícia do estado do Rio de Janeiro, e Silvia Ramos, cientista social e autora de livros, entre eles “Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro”.