Teremos como saber muita coisa
O Brasil tem uma longa tradição de mistérios no âmbito da segurança pública. Por vezes não se sabe qual é, de fato, a política pública implementada nem suas metas exatas — o caso atual, no Rio de Janeiro (e a nível nacional, também). Por vezes é a atuação administrativa que fica sem detalhamento público, como aconteceu durante a Intervenção Federal e posteriormente, com a decisão do atual governador, Wilson Witzel, de abolir a Secretaria de Segurança Pública. Não temos informações, tampouco, dos custos verdadeiros do programa de pacificação, implementado no Rio durante a gestão de José Mariano Beltrame no cargo de Secretário de segurança pública estadual.
Até os próprios dados sobre o crime surpreendem: ao contrário do que se esperaria, a coleta de informações a nível nacional não é responsabilidade do governo federal. Quem se incumbe disso é uma organização sem fins lucrativos, custeada por fundações, organizações multilaterais e ONGs, o Forum Brasileiro de Segurança Pública.
Hoje, lidamos com um mistério novo: como e por que as taxas de crime diminuem no Estado do Rio? Seria possível atribuir a tendência à maior violência policial, ao apoio do governador Witzel às incursões policiais nas favelas da região metropolitana? Parece fácil concluir que mais tiros policiais levam a menos assaltos e outros crimes.

A rede conta com o apoio de legisladoras eleitas em 2018, Renata Souza e Mônica Francisco, ambas PSOL

A partir do dia primeiro de junho, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, CESeC, pretende trazer mais transparência ao setor, com a criação de uma rede de coleta de dados e de troca de informações. Constituída por entidades dos estados de Ceará, Bahia, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, a nova Rede de Observatórios da Segurança Pública recebe o apoio financeiro da Ford Foundation, da Open Society Foundations e da Universidade Cândido Mendes.
Até abril de 2021, a Rede pretende atuar como uma sólida resistência à violência policial, que aumenta em muitas partes do país. Irá também preencher lacunas de pensamento, debate e ação na elaboração de políticas públicas para reduzir o crime e a violência. Vai além dos números oficiais, documentando policiamento em geral, vitimização de agentes do Estado, corrupção policial, chacinas, os sistemas penitenciários e socioeducativo, linchamentos, violência armada, ações e ataques de grupos criminais, manifestações, greves e protestos, excessos por parte de agentes do Estado, feminicídio e outras violências contra a mulher, racismo e injúria racial, violência contra LGBTQ+, intolerância religiosa e violência contra crianças e adolescentes.
Ironicamente, uma área onde não há mistério é a de conhecimento de políticas públicas que de fato funcionam. Em 2017, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entidade federal, publicou o pensamento de alguns dos mais conceituados atores e pesquisadores da área, sobre as faltas de Brasília. Por motivos variados que pouco têm a ver com os anseios do cidadão comum, são descartadas recomendações baseadas em realidades, fatos e números.
O lançamento da Rede, no começo desta semana, encheu o auditório do Museu Histórico Nacional com ativistas, atores e pesquisadores na área de segurança pública. Chamados ao microfone, vários expressaram espanto com o apoio de sociedade e governo à violência nas ruas e penitenciárias do país.
Átila Roque, diretor da Ford Foundation no Brasil, disse enxergar um projeto do uso da violência para a “regulação da ordem, a supressão de revolta”. Monica Francisco, eleita deputada estadual em 2018 pelo PSOL, membro do que ela chama de “mandato quilombo” disse não ter conseguido imaginar, há poucos anos, as impunes mortes de moradores de favela que hoje acontecem, muito menos o assassinato, ano passado, da vereadora Marielle Franco (e de seu motorista), com quem trabalhou.
O coronel de reserva Íbis Pereira, ex-comandante da Polícia Militar (2014), chorou ao tentar descrever o quadro atual. Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e morador da favela de Santa Marta, evitou lamentar o presente, elogiando a eleição de vários parlamentares de origem popular nas últimas eleições. Criticou a esquerda por não ter focado em segurança pública enquanto estava no poder.
Enquanto não tivermos mais informações, dizem especialistas, é bom manter o senso crítico. Pablo Nunes, pesquisador e coordenador da Rede, disse ao RioRealblog que a queda atual nas taxas de crime fluminenses lembra o que aconteceu o ano passado, durante a Intervenção Federal: diminuiu o roubo de carga enquanto houve mais pressão policial/militar sobre esse tipo de crime, e só. A tendência, prevê, é que o crime volte a aflorar; além de atuação policial na rua, é preciso juntar inteligência sobre as dinâmicas envolvidas, solucionar casos.
Lição, aliás, que já se revelou nos anos 1990 e 2000.
Nunes também lembra que a letalidade em si continua alta, se tabuladas as mortes causadas por policiais (que aumentam), junto com os homicídios comuns. A atuação policial do momento é insustentável, ele acredita. Não há metas de redução de violência.
“Pouquíssima coisa foi colocada pelo governo Witzel no Rio de Janeiro, como projeto de política pública de segurança”, acrescenta Nunes. “Nunca apresentaram nem um esboço de projeto, só tem chavões, tem a fala de vão lá e os policiais que façam, mas até hoje a gente não tem nenhuma coluna vertebral do que vai ser a tarefa da Polícia Militar, o que vai ser a tarefa da Polícia Civil, e de [outros atores] de segurança pública envolvidas. O que a gente tem visto é que as duas corporações tem agido muito por conta própria”.