Tem polícia gente boa

Pesquisa mostra que muitos jovens de favelas e aglomerados de BH, graças a projetos que têm como base a cultura e o diálogo, não enxergam mais os homens de farda como inimigos

O estudante Charles Martins do Nascimento, de 15 anos, aprendeu na Favela da Ventosa, região Oeste de Belo Horizonte, que a palavra medo tem um sinônimo: camburão. Apesar da proximidade com o tráfico, ele conta que nunca vendeu ou pôs um “baseado” na boca, mas, mesmo assim, raramente é poupado da repressão policial durante as freqüentes batidas na vila, no Bairro Jardim América, não raro marcadas por socos, pontapés e agressões verbais. Com o tempo, os homens de farda ganharam, para ele, o status de inimigos. Mas, graças a ingredientes simples, como a cultura e o diálogo, uma nova relação se estabeleceu.

Pesquisa feita pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro, mostra que Charles e 80,8%dos jovens que passaram pelo Projeto Juventude e Policia – que leva militares às escolas de periferia, para oferecer oficinas de arte, esporte e música aos alunos – criaram uma imagem positiva dos PMs. “Já tenho amigos entre eles”, constata.

O estudo foi feito por amostragem, com 245 dos 1,7 mil adolescentes que freqüentaram as aulas de percussão, basquete, dança de rua, teatro e grafite em BH. As escolas municipais Oswaldo Cruz, no Jardim América, e Anne Frank, no Confisco, região da Pampulha, foram usadas como referência. Os estudantes responderam a questionários, em que expunham sua opinião sobre os policiais. Além disso, em respostas abertas, usaram palavras para classificá-los. Se antes os adjetivos “odiados”, “violentos”, “chatos” e “mal educados” eram os mais recorrentes, depois os termos “gente boa”, “respeito”, “amigos”, “legais” e “educados” lideraram a lista.

A parcela que não mudou sua visão ou continuou com uma imagem negativa dos militares também é alta – 13,8% na primeira escola e 21,3% na outra, o que os especialistas atribuem a traumas desenvolvidos por parte dos jovens. Para a cientista social do Cesec, Silvia Ramos, coordenadora do Juventude e Polícia, os resultados não exprimem uma mudança na hostilidade histórica entre policiais e jovens de periferia, alimentada pelo preconceito mútuo. Mas abrem caminho para que o governo do estado, responsável pelo projeto, invista em sua ampliação. “Testamos um instrumento que se mostrou forte e eficaz para mudar esse cenário. Quando alguém quebra um tabu, dificilmente volta a pensar como antes. O que precisamos, agora, é que essa receita seja usada em larga escala”, comenta.

OUVIDORIA . Os desafios são imensos. Enquanto o número de jovens alcançados é pequeno, diante da população que mora em favelas, a maioria dos 39 mil policiais mineiros também não teve a oportunidade de refletir, com o Juventude e Polícia, sobre a cultura de ódios, preconceitos e ressentimentos que há décadas os separa do morro. Atualmente, a juventude pobre é a principal vítima da violência policial, de acordo com a Ouvidoria de Policia de Minas. “O potencial do projeto é grande, mas nada garante que o garoto que passou pelas oficinas encontrará, na favela, o mesmo tipo de militar que o ensinou”, admite Silvia.

Charles Martins conta que, depois que começou a aprender surdo e repinique na escola, já foi revistado três vezes na rua. “Em duas, disseram que eu ia apanhar e me chamaram de rato da Ventosa. Em outra, fui arrancado de um ônibus, tive que deitar no chão e levei pancada de cacetete. Mesmo assim, já sei que há dois tipos de policial”, pondera, ao lado da colega Andreza Nunes, de 15, que escreveu uma carta de próprio punho, em agradecimento aos militares do curso. Jéssica Lacerda, da mesma idade, diz que também fez as pazes com a PM:

“Em 2003, uma bala perdida me atingiu na cabeça, num tiroteio de traficantes. Escapei, mas fiquei com medo de sair na rua e andar perto do camburão, porque sabia que algo ruim podia acontecer. Agora, até corro atrás dele, porque fiz amizade com alguns da equipe”.

O secretário-adjunto de Defesa Social, Luís Flávio Sapori, adianta que o Juventude e Polícia vai crescer no ano que vem, ainda que timidamente. O objetivo é dobrar o número de policiais – atualmente 20 – capacitados para liderar as oficinas. Assim, a agenda nas escolas de BH será intensificada. Outra proposta é promover atividades, como a exposição de vídeos e palestras nos núcleos do Fica Vivo, projeto desenvolvido na capital e em outras grandes cidades, para reduzir o índice de homicídios.

A fórmula de financiamento será a mesma usada em 2005, para evitar os entraves da Lei de Licitações, que dificulta o repasse de recursos do orçamento a parceiros da iniciativa privada. O projeto foi aprovado na Lei de Incentivo à Cultura e recebe patrocínio da Cemig. A empresa vai dobrar o patrocínio, atualmente no valor de R$ 300 mil, em troca de incentivo fiscal. “Inicialmente, queremos consolidá-lo na capital para, em seguida, levá-lo ao interior”, afirma Sapori, garantindo que a iniciativa, nascida no morro, terá vida longa.

A idéia de aproximar a juventude pobre dos policiais, tirando-os do contexto do confronto, foi do grupo de percussionistas AfroReggae, da favela carioca de Vigário Geral. O conjunto se formou em 1993, depois da chacina que matou de 21 pessoas do aglomerado. Em 2002, os integrantes procuraram o Cesec para, ao invés de divulgar o repertório “antiPM”, pedir ajuda em uma série de “invasões culturais” nos batalhões do Rio. As negociações com o governo local falharam. Em 2004, a Defesa Social de Minas aceitou abrir suas portas.

Naquele ano, 70 homens e mulheres de cada batalhão de BH passaram por workshops, oficinas e shows, sob o comando do AfroReggae, para entender a cultura da favela. Em 2005, o alvo do projeto mudou: 40 foram selecionados e treinados em teatro, dança, basquete, percussão e grafite para, dessa vez, ministrarem oficinas. Os 20 melhores são os que, agora, dedicam duas semanas de cada mês a levantar, nas escolas, a bandeira branca entre o asfalto e o morro.

  

Carregados de preconceito

Tensão diária vivida na maioria das favelas e bairros de periferia favorece a criação de conceitos estigmatizados, e nem sempre verdadeiros, entre jovens e policiais do país

Os excessos cometidos por policiais têm como principal alvo, em Minas, a juventude pobre, que mora nas periferias. Dados da Ouvidoria de Polícia mostram que, em 2005, 43% das denúncias de violência recebidas tiveram como vítimas pessoas de 12 a 29 anos, parcela que chegou a 64% nos primeiros seis meses deste ano. A maioria é de jovens de cor negra ou parda, com baixas escolaridade e renda, sobre os quais pesa forte carga de preconceito e exclusão social. Os casos se referem à atividade das polícias Civil, Militar e dos Bombeiros. O abuso de autoridade, seguido de agressão, lidera a lista de queixas, à frente das ameaças (13,4%), outros tipos de abuso de autoridade (10,9%), e das lesões corporais (10%).

A situação é resultado de uma série de fatores, a começar pela própria dinâmica da violência no Brasil. Privados de oportunidades de estudo e emprego, homens e mulheres dessa faixa etária são, atualmente, os principais atores do crime no país, o que o leva a se envolver mais em confrontos com a polícia. Além disso, por causa do tráfico, as favelas se tornaram os principais focos de criminalidade. Apesar de poucos moradores se envolverem com as atividades ilícitas – menos de 1% -, o quadro reforçou o estigma social, inclusive entre os policiais. “Por causa da tensão vivida nos morros, muitas vezes eles entram preparados para o confronto. O problema é que a população não é inimiga, está ali para ser protegida”, afirma o ouvidor de polícia de Minas, José Francisco da Silva.

A esse cenário, de acordo com o especialista do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG, Robson Sávio Reis, soma-se o despreparo de profissionais, que muitas vezes saem das academias sem noções importantes de direitos humanos, técnicas de abordagem e policiamento comunitário. “O treinamento tem melhorado, sobretudo em Minas, mas precisa ser ampliado”, comenta.

Para a cientista social Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), o preconceito gera reações em cadeia. Se, por um lado, os agentes do estado tendem a formar um estereótipo do criminoso, cuja imagem corresponde ao jovem de cor negra, com boné, correntes e roupas largas, as comunidades pobres constróem um conceito negativo e generalizado dos policiais, vinculando a farda à truculência. A desconfiança mútua alimenta ainda mais os conflitos e afasta da polícia os moradores, que poderiam ser aliados. Em geral, deixam de denunciar bandidos e de registrar crimes.

Pesquisa feita há dois anos pela Ouvidoria, com 800 moradores da Grande BH, mostra que cerca de um terço da população desconfia ou desconfia totalmente das polícias Militar e Civil. Outro estudo, desenvolvido pelo Crisp, em 2002, revela que 73% das vítimas de roubo, 70% das de furto e 86% das de agressões sexuais não comunicam os problemas à polícia na capital.

ATITUDE . Morador do Bairro Keneddy, em Contagem, o técnico em enfermagem R.A.S., de 25 anos, acordou, em 20 de outubro, com 12 policiais do Grupo de Resposta Especial (GRE) da Polícia Civil em casa. Depois de derrubarem o portão e a porta da sala às 5h30 – horário proibido para esse tipo de ação -, eles mandaram que o jovem se deitasse no chão e, segundo ele, pisaram três vezes em sua cabeça. A porta de um dos quartos foi derrubada sobre a mãe, que ficou ferida no rosto. A irmã de 17 anos teve a arma apontada para a cabeça todo o tempo. O grupo foi embora sem nada explicar ou apresentar mandado de busca. Pouco depois, invadiu a casa de uma vizinha, disse que era engano e se despediu. “Não esperava, atitude tão violenta de uma corporação que existe para me proteger”, afirma.

O secretário-adjunto de Defesa Social, Luís Flávio Sapori, diz que a incidência de abusos caiu muito nos últimos anos, graças a investimentos maciços. A preparação dos policiais, afirma, tem sido prioridade. Ele cita o Centro de Treinamento Policial (CTP), criado em 2002, que visa reciclar os conhecimentos de militares. A cada dois anos, todos eles passam por um curso de uma semana, em tempo integral, para rever, entre outros conteúdos, direitos humanos, policiamento comunitário, técnicas de abordagem e prevenção às drogas. “A formação melhorou muito em 10 anos. Está mais científica e consistente, e isso se reflete na nossa atividade”, conclui o responsável pelo setor de Comunicação Corporativa da PM, tenente-coronel Alexandre Salles. (FF)

Corporação apóia projeto

Quando o Juventude e Polícia foi implantado em Minas, uma das preocupações dos idealizadores era a resistência dos policiais militares ao projeto. Temia-se que eles não aderissem, entre outros motivos, por causa da dificuldade de reconhecer o preconceito e da cultura hermética da corporação. Mas a pesquisa feita pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Cândido Mendes, revelou um outro retrato.

Os especialistas aplicam questionários a 192 profissionais de dois batalhões de BH, cujos nomes não foram revelados. Pelo menos 86,5% responderam que os moradores de favelas estigmatizam os PMs, mas 65,6% admitiram que o contrário também se verifica. A rnaioria se mostrou, ainda, aberta à aproximação com a juventude. Em uma das unidades, 71,7% disseram que o projeto ajuda na integração com a comunidade; em outra, 58,1%.

A avaliação negativa, maior temor desde o início, foi pequena. Apenas 5,4% dos policiais afirmaram que o projeto ridiculariza a corporação. Pelo menos 4,2% disseram que atrapalha a escala e outros 3,1%, que não é papel da PM fazer trabalho assistencial em favelas. Para a secretaria de estado de Defesa Social, os resultados são um incentivo. No ano que vem, a promessa é promover atividades dentro de todos os batalhões da capital, levando o universo das periferias para dentro dos QGs da PM.

A cientista social Silvia Ramos explica que, apesar de vários policiais serem negros e de origem humilde, o estigma da farda pesa sobre eles. “É como se, ao vestir o uniforme, vestissem a ideologia corporação. Então, passam a ser hostilizados”, comenta. Problema que o capitão Walter Gonzaga, 41 anos, sentiu na pele durante toda a vida profissional. Morador do aglomerado da Serra, o maior da capital, ele conta que nunca foi processado por violência arbitrária, mas não foi poupado de nenhuma ofensa. “Já fui, como vários outros, chamado de cachorro do governo”, lamenta.

Não por acaso, há dois anos, foi um dos primeiros a se candidatar ao Juventude e Polícia. Afinal, além de gostar de música e esporte, conheceu o outro lado. Até os 14, como a rnaioria dos meninos da favela, não via os policiais como heróis, mas um episódio fez o sentimento mudar. “Minha irmã sofreu um acidente, enquanto lavava roupa, e foi socorrida por PMs. Fiquei comovido com o carinho e a dedicação e, naquele momento escolhi minha profissão”, conta e que atualmente é o coordenador operacional do projeto em BH. (FF)

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