A ideia era falar sobre o custo da guerra às drogas, tema de um amplo levantamento divulgado na segunda-feira (29) pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido Mendes, no Rio.
No mesmo dia, um país inteiro acompanhava com apreensão a repercussão da morte de um policial militar na Bahia que, na véspera, perambulou por Salvador dando tiros para o alto e jogando ao mar produtos e bicicletas dos ambulantes do entorno do Farol da Barra. Foi lá que, após três horas e meia de negociações com grupos especializados da corporação, ele foi morto (ou “neutralizado”, conforme o termo técnico), depois de disparar contra os colegas.
Após o episódio, uma pretensa revolta policial foi estimulada em publicações dos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e da presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Bia Kicis (PSL-DF). Eles queriam um mártir anti-lockdown para chamar de seu.
Com o cenário, a rota da conversa com a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, parecia alterada pelas circunstâncias. Só parecia. Primeira mulher a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro, no começo dos anos 1990, a especialista em segurança pública diz ver conexões entre a tragédia no Farol da Barra e a situação-limite enfrentada por policiais, agravada mas não iniciada na pandemia.
A crise é resultado também da guerra às drogas — uma guerra que, só no Rio e em São Paulo, custa aos cofres públicos R$ 5,2 bilhões ao ano, em valores subestimados e com resultados catastróficos. Segundo o estudo, o valor é suficiente para comprar mais de 100 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 ou, ainda, custear um ano de renda básica no valor de R$ 600 mensais para mais de 720 mil famílias.
“Não estamos falando em acabar com a polícia, mas em não investir em uma estratégia fracassada. Vamos usar a polícia para dar segurança para as pessoas ou para provocar mais mortes, dor, sofrimento? Se a gente investe recursos públicos para matar pessoas, estamos usando o orçamento de forma inconstitucional”, afirmou.
Para Julita Lemgruber, a escolha por uma política de morte tem levado à brutalização dos agentes de segurança. “O que aconteceu na Bahia é um exemplo muito forte do que a gente vem dizendo há tempos. Há um trabalho importante da socióloga Deyse Miranda sobre o índice de suicídio de policiais militares. A esses policiais não são oferecidos treinamentos e salários dignos, e eles são colocados na linha de frente de uma guerra que não escolheram combater. Há, de um lado, varejistas de drogas, negros e moradores da periferia, e policiais que muitas vezes também são pobres, negros e moradores da periferia. Em algum momento esses grupos se veem em lados opostos de um embate chamado ‘guerra às drogas’. Os dois grupos são vítimas dessa guerra. E são vítimas de interesses que se situam em escalas muito superiores a eles.”
A especialista diz que a prisão dos pequenos varejistas do tráfico, logo substituídos por outros pequenos traficantes, é apenas a ponta da estrutura. “Os interesses maiores não aparecem. Quem lucra realmente com a proibição? Quem faz circular grandes quantidades de drogas que viajam até em avião da FAB (Força Aérea Brasileira)? Quem traz as armas e as drogas? Como é possível que, em uma única operação da polícia, sejam apreendidos 70 fuzis? Esse fluxo está entrando no país debaixo do nariz das autoridades.”
Para a especialista, a brutalização, embora tenha lastros históricos, ficou mais aguda desde a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. O caso na Bahia trouxe à tona a necessidade de se discutir como a sociedade transformou policiais em massa de manobra para uma política de morte.
“Bolsonaro quer instrumentalizar os policiais a seu favor, jogando-os contra governadores e poderes locais. E os policiais militares veem Bolsonaro dando benesses para Forças Armadas com enorme interesse. Certamente estão avaliando até onde podem ir para ganhar apoio do presidente. É um jogo perigosíssimo.”
Segundo a socióloga, um dos sinais de que a “política de morte” joga contra a própria base de apoio do presidente é a ampliação do acesso a armas e munições pela população civil. Ainda assim, ela observa resiliência no apoio ao presidente. “Esse apoio tem mais a ver com uma identidade, que vai pelo moralismo, pelo conservadorismo, por por valores de lei e ordem. É preciso lembrar que nunca as polícias tiveram tantos representantes no Congresso como agora. Tem um conjunto de variáveis se multiplicando e produzindo tudo isso.”
Entre as variáveis estariam a ampliação do excludente de ilicitude, que dificultaria ainda mais a condenação de policiais investigados por uso excessivo da força. “Mesmo não tendo sido aprovada, foi um aceno a quem é acusado de mortes, desaparecimento e execuções e hoje está reincorporado à polícia. A atitude permissiva de pessoas como Bolsonaro em relação à violência já está provocando resultados sem que se aprove o excludente.”
Dos tempos em que era ouvidora da polícia no Rio, ela guarda na memória as queixas tanto da população em relação à violência da polícia quanto da polícia em relação à forma autoritária e desrespeitosa com que os comandantes dos batalhões tratavam os praças, cabos, sargentos. “Havia uma frustração muito grande, uma revolta dos policiais de patentes inferiores. Você tem aí um caldo que vai alimentando essa revolta.”
Xuxa e a hipocrisia
Na outra ponta da guerra às drogas, afirma Lemgruber, está o encarceramento em massa no Brasil — tema que é quase sempre negligenciado ou encoberto pela hipocrisia. Foi o que ela observou no último fim de semana, após a apresentadora Xuxa Meneghel defender que pessoas presas substituíssem cobaias animais em testes de laboratório.
“Muita gente se surpreendeu com a declaração, mas a Xuxa só teve coragem de dizer, e num descuido, o pensamento de uma parcela significativa da sociedade. É a ideia de que você pode jogar homens e mulheres atrás dos muros da prisão e jogar a chave fora. Eles que se devorem lá dentro.”
Autora de “Cemitério dos Vivos”, livro referência sobre o sistema prisional publicado em 1983, a socióloga acompanha a situação das prisões no país há mais de 50 anos e garante que, de lá para cá, “a situação só piorou”. “O Brasil é o terceiro maior encarcerador do planeta. E muitos desses homens e mulheres presos vivem em condições cruéis e degradantes. Mas isso não perturba o sono de ninguém. Aí, quando a Xuxa faz um comentário desses, vem uma chuva de reprovação. Chega a ser hipócrita. Muitos dos que se dizem chocados compartilham a ideia de que o preso não deve ter direito, que ele rompeu com o contrato social e merece o pior dos mundos. O que a gente não lembra é que ele chegou a esse lugar porque o contrato social não funcionou.”
Ela lembra que, no Brasil, boa parte da população carcerária é composta de réus primários que não cometeram crimes violentos e não pertenciam a facções. “A Lei de Drogas é hipócrita porque diz que o juiz pode distinguir traficante de usuário a partir de circunstâncias pessoais. Nada mais racista. Quando você fala sobre prisões você fala sobre a mais profunda das discussões, que é a discussão da privação da liberdade. A postura quase sempre é: ‘posso discutir racismo, questões de gênero, os temas LGBTQI+, mas não me venha pedir pra ser condescendente com direitos de criminosos. Ai não posso’. É um ponto que não se consegue ultrapassar. Esse nervo exposto está concretizado nas prisões.”