Silvia Ramos a Marcia de Almeida, sobre violência e segurança

Segurança pública e violência: Silvia Ramos, do CESeC, fala tudo

A entrevista de hoje é com a especialista em Segurança Pública e ex-subsecretária adjunta de Segurança Pública do Rio de Janeiro (gestão Luis Eduardo Soares, em 1999), Sílvia Ramos, que, entre outras coisas, fundou a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), com Betinho.

 

Você fala que na área de Segurança Pública a participação da sociedade civil é muito pequena, ao contrário de outros setores, especialmente o combate à homofobia, que é o vetor com o qual mais trabalha. A que você atribui isso? Não seria um pouco porque a sociedade civil tem preconceito contra a polícia, rejeita uma parceria?

SR: É interessante refletir sobre isso, porque uma das coisas que é minha perspectiva de trabalho desde lá atrás, na Secretaria de Segurança, a criação do DDH (Disque denúncia Homossexual) e áreas específicas como o combate à homofobia. É meio assim: há áreas em que a participação da sociedade civil brasileira foi decisiva para que políticas públicas mais modernas e mais democráticas se desenvolvessem.

Por exemplo, as políticas para a Aids, em que o Brasil é referência mundial, em grande medida porque organizações da sociedade civil de combate à Aids, o movimento homossexual, o movimento de mulheres, e outros segmentos da sociedade civil disseram que queriam ser ouvidos, queriam ter voz. E isso criou o personagem político, que é o do portador vivendo com a Aids.

Saúde da mulher no Brasil? Hoje essa área é chamada de Direitos Reprodutivos, um termo cunhado no seio do movimento de mulheres, é uma coisa internacional, não é só aqui no Brasil, não é só uma perspectiva da mulher brasiliera, é uma perspectiva do feminismo. Eu não tenho dúvidas de que se a saúde no Brasil tem políticas avançadas, mesmo que só na intenção, se deve ao movimento das mulheres.

Na psiquiatria você tem o Movimento Anti-manicomial. Todas as políticas de meio ambiente no Brasil são baseadas em que o governo tem que implementar uma coisa que tenha uma participação ativa da sociedade civil, que atua de diversas formas, pela mídia, pelo Congresso Nacional, etc e tal.

Na área de Segurança Pública, não. É uma área que eu diria que carece dessa participação, do movimento negro, do movimento de mulheres, do movimento homossexual, o chamado mundo das ONGS, não é? ONGs como o Ibase, a Fase, o Inesc, não participaram e participam menos ainda dessa área de Segurança Pública. É como se tivesse havido um pacto. Eles dizem, “isso aqui é coisa de polícia, vocês não se metem”, e a sociedade civil dizendo “ esse negócio de polícia é com eles, é com Estado, não não temos nada com isso, somos a favor da democracia”. O que acontece é que a democratização brasileira ficou incompleta na área de Segurança Pública.

Você não acha que isso tem muito a ver com um preconceito existente em relação à polícia? Ninguém que ir lá, conversar com os canas, um certo resquício da ditadura recente, mas vem de antes. Na verdade, o brasileiro nunca foi com a cara de polícia. Em abril deste ano teve aqui no Rio o I Seminário de Segurança Pública de Combate à Homofobia, e tinha menos gente do que deveria. E pouca denúncia.

SR: Concordo plenamente. Atribuo isso em grande medida a esse silêncio que se estabelece, uma omissão mesmo, se você pegar que temos uma taxa de 50 mil assassinatos por ano, o Brasil é um dos países com maior taxa de violência do mundo. E algumas cidades dentro deste país violento, como o Rio de Janeiro, têm as taxas de maior violência do Brasil.

Há de fato um silêncio, uma omissão, de um setor da sociedade brasileira em relação à segurança pública, que só Freud explica – e uma das explicações é quase inacreditável que neste setor que é tão sensível na questão da democratização, neste setor da segurança pública, ela não se tenha concluído.

E por quê? Não é porque a polícia não quer, porque já arrombamos mil portas por aí. Você tem razão, há, sim um preconceito, especialmente da geração dos que têm 40, 50 anos, que pegaram a ditadura militar, que fizeram uma grande confusão entre segurança pública , talvez por causa da polícia militar, e repressão.

Acho que um dos exemplos clássicos dessa confusão foi quando o Brizola, no seu primeiro governo, em 1982, proibiu a subida de carros da polícia nas favelas. Este fato foi real e é um dos fatores responsáveis por tudo o que veio se degringolando depois? Não da relação polícia/morador, porque isso faz parte de uma necrose social que vai além da segurança pública…

SR: Acho que existe essa responsabilização do governo Brizola nessa degradação do aparelho policial , sim, mas este fenômeno que eu estou falando é um fenômeno nacional, independe do que aconteceu aqui no Rio de Janeiro.

E essa história do Brizola ter proibido a polícia de subir nas favelas também não é real, há um mito de origem. O que houve é que o comandante da Polícia Militar, Carlos Nazareth Cerqueira, modernizou a polícia, trazendo várias modernidades, como o policiamento comunitário, que já existia em muitos lugares no mundo, mas aqui ninguém fazia. Hoje tem em todo lugar, mas, na época, a ala mais conservadora da PM espalhou essa mentira, de que o Brizola tinha proibido que a polícia subisse as favelas.

Com isso eu não estou querendo defender o Brizola, o que eu acho é que a governos preocupados com a política dos direitos humanos se seguiram governos extremamente violentos, com a política do bandido bom, é bandido morto. Então, aqui no Rio, tivemos o Brizola, dizendo que não se podia arrombar porta de barracos, seguido do Moreira Franco dizendo “vamos acabar com a violência em 100 dias”; depois, Brizola de novo. A seguir, Marcelo Alencar com a política do General Nilton Cerqueira, coronel do Exército…

Responsável por um dos massacres à guerrilha do Araguaia…

SR: Isso, e que estabeleceu a política da gratificação para policiais que matassem bandidos. Depois veio o Garotinho, com as delegacias legais, não pode matar, não pode não sei o quê, instalando as ouvidorias. Então, ficou essa gangorra, a polícia, nos últimos 20 anos, foi usada como campo de manobra político- partidária. O que aconteceu com as polícias de São Paulo, por exemplo, e de Minas Gerais? Elas se mantiveram mais ou menos independentes dos governos serem de esquerda ou de direita, tinham uma certa autonomia – e isso trouxe um processo de modernização muito mais consistente dentro delas.

No Rio, tivemos Brizola e o policiamento comunitário; aí saiu o Brizola, veio a política de arrombar porta mesmo, e com essa história pendular, a polícia do Rio deixou de se constituir com uma história própria. Acho que o problema maior do Rio de Janeiro é este, a história da segurança pública ser extremamente atravessada por interesses político-partidários.

Um se elegeu dizendo bandido bom, é bandido morto; o outro se elegeu baseado em direitos humanos. Essas políticas todas deveriam ser políticas de Estado e, não, de governo. A política de Aids no Rio de Janeiro deveria mudar de acordo com a troca de governo? Não, claro. O que é que se tem? Um sistema de saúde que estabeleceu um planejamento mínimo em sintonia com os movimentos de Aids, os movimentos de mulheres, o movimento homossexual. Quando troca o governante, ele poderá trocar o secretário, etc, mas ele não pode fugir muito dessa pauta estabelecida, ou vai ser objeto de crítica e repúdio por parte da mídia e de todo mundo.

Na segurança pública nunca aconteceu isso. Nela, não conseguimos ainda construir, mas acho que agora vamos conseguir, uma massa crítica na sociedade. Isso independe se o governo é do PT, do PDT, do PSB. Isso não interessa. Esse programa mínimo é de Estado. Polícia está aí para garantir a segurança dos cidadãos, e, não, dos partidos.

E que outros danos ela traz?

SR: Ela prova a fragilidade deste setor, né? Uma parte do nosso trabalho aqui no Cesec é não só identificar os problemas na Segurança Pública, com a polícia, independente de quem está no governo, junto com ela e criticando ao mesmo tempo, mas tem sido também e especialmente com os movimentos e as ONGs, a chamada sociedade civil.

O seminário que você mencionou anteriormente, foi de grande importância, pois foi a primeira vez que um segmento procurou a polícia. Veio polícia do Brasil inteiro. Atribuo sua realização ao amadurecimento do movimento homossexual, que evoluiu muito nos últimos anos, mas também à trajetória que nós tivemos aqui, no Rio de Janeiro.

E dá pra nos dar esse percurso?

SR: Quando criamos o DDH (Disque Denúncia Homossexual), lá atrás, em 1999, o Luis Eduardo Soares como sub-secretário de Segurança Pública e coordenador de segurança, justiça e cidadania, achava que quem poderia falar sobre violência contra os homossexuais, eram os próprios homossexuais; contra as mulheres, as próprias mulheres, vamos trazer as organizações aqui pra dentro, etc. Aquela “invasãozinha”que nós fizemos ali, deixou uma memória no movimento homossexual e, a partir disso, o combate à homofobia foi sempre pensado como, umpedaço dele, sendo sempre feito com as polícias, um trabalho de mudança, e de repente redundou naquele seminário de abril.

Como é que você conseguiu, no governo neo-evangélico do Garotinho, que era aquele poço de preconceitos em geral, fazer um encontro entre os travestis e a Polícia Militar?

SR: Olha, foi arrombando a porta. Eles não sabiam o que a gente ia fazer, ficavam sabendo com as notícias de jornal. Preconceito dos evangélicos e da própria polícia.

Nós percebemos logo, dentro do governo, que o trabalho ligado ao movimento homossexual, principalmente com os travestis, era o que dava maior visibilidade. Fazíamos trabalho com o movimento negro, com o movimento de mulheres , mas quando era com o MBH (Movimento Brasileiro Homossexual), ia toda a imprensa. E isso passou a ser uma forma da gente dialogar com a polícia.

Então estavam lá, o Luis Eduardo Soares, secretário de segurança, o chefe da Polícia Civil, o comandante da Polícia Militar, e os representantes do movimento homossexual, com a bandeira do arco-íris. Era também uma forma de dizermos: “gente, é reforma na polícia mesmo. Quando falamos em diálogo, é diálogo mesmo, vejam aqui o exemplo.”

Claudio Nascimento e Giovanna Baby foram a dar aula na Acadepo, academia de polícia. Essa entrada do movimento homossexual na Secretaria de Segurança, deu muita confusão, porque chegavam aqueles mulherões, arrumadíssimas, de saltões, tectectec, e o policial ligava e dizia: “professora, a mulher se chama José Luiz, o que eu faço?” Deixa subir, né?

A Secretaria de Segurança parava, aquilo corria como pólvora. Esse trabalho com os travestis acho que, inclusive, é um cartão de visitas dos direitos humanos que foram implantados na Secretaria de Segurança, à época.

Era uma espécie de bandeira que se mostrava.

E este trabalho com os travestis é mantido?

SR:Não, quando nós saímos tudo isso acabou. Mas aqui no Cesec temos uma linha que trabalha com minorias, há 4 anos fazemos pesquisas nas paradas do orgulho gay, junto com o CAN, em Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre. E já há vários grupos no Brasil replicando o questionário que criamos, o que nos permite que ano a ano saibamos se houve mudanças e podemos comparar se há diferenças, entre norte, nordeste, etc.

Essas pesquisas têm a ver com essa época, quando começamos a pensar na vitimização, de que tipo de violência dodo o arco-íris homossexual é atingida, ou seja, gays, lésbicas, travestis e transgêneros são vítimas. De que discriminações e de que preconceitos?

Foi com muito orgulho que o Cesec e o Clam acompanharam o seminário de segurança pública, e eu pessoalmente, não sem uma ponta de orgulho, que foi um barato, produto de um caminho traçado oito anos antes.

E de abril pra cá? Houve uma carta, um documento, etc, mas daquilo o que já foi ou está para ser aplicado?

SR: Não tenho a menor idéia. Pessoalmente, nem acredito na aplicabilidade prática imediata dele. Este tipo de seminário vai criando uma cultura, como no caso da Aids. Havia seminários com representantes de cidades longínquas, e a palestra era feita por um travesti. A representante voltava pra sua cidade, mas ficava marcado que a palavra tinha sido de um travesti.

São iniciativas que, se se mantém, por exemplo, a cada um ou dois anos, policiais do Brasil inteiro saem de suas cidades para se encontrar com gays, lésbicas e travestis.E transgêneros. O sujeito diz: “ôpa, se o comandante está mandando ir, acho que é pra respeitar esses caras”.

No começo do seminário havia uma tensão grande, pois o liite poderia se romper dos dois lados. A polícia dizendo “nós somos policiais e vocês são homossexuais”, e o lafo GLBTT, nós somos homossexuais e vocês, nossos algozes.

A apreensão se rompeu quando um dos policiais se apresentou como delegado e disse que era gay, pela primeira vez, em público.

RIO DE JANEIRO

Saiu há pouco uma estatística de que para cada policial morto no Rio de Janeiro, morrem 47 cidadãos, um índice assustador. Você disse que o Cesec começou a ser convidado pelo governo Sérgio Cabral para ser ator nessa discussão. Como você analisa um governo que chama vocês para dialogar, mas, ao mesmo tempo, é extremamente violento?

SR: A polícia do Rio de Janeiro é a mais letal do Brasil e uma das mais letais do mundo. A taxa da letalidade oficial – aquelas pessoas que a polícia matou e pronto, porque tem muitas outras que são execuções, policiais que matam na folga, quando fazem serviço de segurança – a que abrange mortes por confronto, só ano passado foram 1063. Isso é um número que significa que 14% de todas as mortes ocorridas no estado do Rio de Janeiro são de autoria da polícia. O que se aceita normalmente é que a polícia seja responsável por 1% das mortes, 2%. 3% é o limite. E esses 145 não ocorreram só ano passado, vem sendo assim, com exceção de 1999, quando nós estivemos na Secretaria de Segurança. Ano passado foram 1063, no outro 1190 e alguma coisa… são números absolutamente escandalosos por qualquer parâmetro que você possa usar.

Internacionalmente, para cada 10 pessoas mortas em confronto – o que significa os dois lados em riscos, não é?-, morre um policial. Isso de 45 por um é a prova de que há um abuso no uso da força letal que a polícia tem.

Tecnicamente, essa é a tradição da polícia do Rio de Janeiro, uma tradição que já vem de muito tempo, uma tradição maldita, porque, a meu ver, a polícia fluminense se degradou por causa disso; uma polícia que mata muito é porque é uma polícia muito corrupta.Se eu posso te matar como traficante e não acontece nada, chega no alto do morro e digo que é um auto de resistência…

Como a ditadura fazia com a gente…

SR: A polícia do Rio de Janeiro é a mais corrupta do Brasil. Não temos estatísticas para isso, mas temos outros indicadores.

O que está acontecendo com o governo Sérgio Cabral? Foi um governo que não prometeu nada nessa área de segurança pública. Nenhum desses centros de pesquisas participou da campanha dele, ele não tinha inclusive programa no setor, ao contrário do Garotinho quando se candidatou. Mas ele surpreendeu na área de Segurança Pública, e acho que em outras também, mas na segurança pública fazendo tres ou quatro gestos. Nomeando o comandante da Polícia Militar o coronel Ubiratan, extremamente identificado com os setores ligados aos direitos humanos, movimentos contra a violência, Viva Rio, etc, tendo ele mesmo coordenado o seminário A Polícia Que Nós Queremos. Podia ter indicado qualquer outro, mas escolheu um ligado a este setor nosso, que não é nada demais, apenas civilizado e contra a barbárie. Fez o mesmo na Polícia Civil, chamando uma pessoa da Polícia Federal, mais ligada à área de inteligência e tal. E refez pontes, pois o governo Garotinho tinha brigado com todo mundo, tinha brigado com o prefeito, com o governo federal, com a mídia. O governo Sérgio Cabral começou a fazer o oposto, abriu um diálogo com o prefeito, com o Lula, com a mídia, com as Forças Armadas e com os centros de pesquisa.

Não sei o que vai acontecer, mas o que posso dizer é que ele surpreendeu na relação de contraste que tínhamos com sete anos de governo Garotinho, porque no primeiro ano nós estávamos lá, na Secretaria de Segurança, justamente nessa abertura, ouvindo todo mundo.

Mas posso dizer que pra nós aqui, a operação que foi feita há semanas no Morro do Alemão foi o desastre dos desastres.

Acho que houve um erro por parte da mídia de achar que ali havia uma novidade, quando falar grosso todos os governos falaram.

Essa operação ocasionou inclusive na exoneração do então presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Rio, João Tancredo, que a classificou como chacina. Você tem indícios de que, realmente, houve execuções?

SR: Tenho, houve execuções. O que não se pode dizer é que todas aquelas pessoas eram inocentes. Elas podiam estar armadas e tendo confronto com a polícia. Acontece que numa operação armada, onde você tem 19 mortos, 8 feridos e 3 presos, isso nãao existe,nem na guerra do Iraque. Quando vocês tem confrontos, há um exército daqui e outro dali, mesmo que em igualdade de condições, você tem muito mais feridos do que mortos. Seguramente aquelas pessoas ao invés de terem sido presas, foram executadas, não tenho a menor dúvida. A cultura do policial do Rio de Janeiro é essa.

É realmente uma pena que o coronel Ubiratan, totalmente identificado com outro tipo de ação, não esteja conseguindo mudar isso. Ou não esteja querendo – a essa altura eu não sei mais dizer.

O que ele diz a você?

SR: Ele vai aos seminários, como você viu em abril. Mas o argumento que eles dão, e que é forte, é que não poderiam ter deixado barato no Alemão. A polícia não pode ser recebida e rechaçada a tiros todas as vezes, ela tem que poder entrar. E esses caras do tráfico, chamados de traficantes, embora o nome não devesse ser este, os que lutam pelo controle territorial, criaram no Alemão uma área inexpugnável. Diferente da Rocinha, por exemplo. No Alemão havia sido decretado que a polícia não entrava. E ela juntou mil e duzento homens e entrou. Por mais que eles tivessem gente, era menos do que isso.

O que nós estamos dizendo é que esse tipo de política nas favelas é o mesmo há 20 anos. Precisamos de uma política de segurança e, não mais, de uma política de violência.

E o que você chama de política de segurança?

SR: Esse projeto que fazemos com o AfroReggae tem essa idéia de aproximar a polícia. A polícia não pode se auto-instituir e ser vista com uma inimiga, como vem se solidificando no Rio de janeiro, especialmente entre os moradores das favelas, de que a polícia é o inimigo. Ele pode estar cerceado pelo traficante, como a maioria não ter nada a ver com aquilo, mas, mesmo assim, ele detesta a polícia.

SILVIA RAMOS (continuação): DESCRIMINAÇÃO DAS DROGAS E O NOVO PLANO

[…] aparece na televisão, etc, os hip-hop comentam que há policiais do bem, alguns grafitam melhor do que os meninos, tocam melhor percussão. Isso vai criando uma nova cultura.

Não é que os problemas desaparecem, mas você cria esse freio de arrumação histórico, vem tudo vindo assim e, ôpa, não precisa ser assim, muda tudo. Você junta todos os policiais do Bem e todos os hip-hop do Bem e faz uma nova frente.

Aqui no caso de Rio de Janeiro, é muito grave a situação. O Sérgio Cabral viu o projeto com o AfroReggae, em Minas, o Cesec, e tal, e disse que quer implantar aqui. O AfroReggae até chama a banda 190 da Polícia Militar, os caras vão tocar como policiais, etc, mas essa cultura do ódio entre policiais e jovens das favelas, não deixa as coisas muito fáceis, não.

DROGAS

Você acha que se houvesse a descriminação da maconha, esse poderio, essa ocupação de território seria menor? Há todo um viés indecente de acusar o usuário como responsável pelo tráfico, quando a polícia é que é responsável pela sua coibição. Como especialista, você tem a ver essa idéia de que o poderio seria menor, se tivéssemos podido plantar o baseado no jardim de casa?

SR: Hoje todo o Cesec participou do Fórum Por Uma Política Democrática de Drogas ( a entrevista rolou no dia 7 de agosto) e foi marcado um encontro aqui, dia 13 de setembro, aberto, para fazermos um balanço do que têm sido as políticas de drogas até hoje no Brasil, e dos fracassos da política criminalizante.

Meu coração se inclina sempre para a descriminalização e a legalização, mas no caso do Rio de Janeiro não se pode ter raciocínios simplistas. Não acho que a descriminalização das drogas acabaria com o poderio dos grupos armados nas favelas, porque se trata mesmo é da arma e do controle de território. Não é só a droga, é a tv a cabo, o transporte, a moto, a van, o ágio no botijão de gás… Se você tem o controle armado sobre uma área, então você tem poder de vida e morte e isso não é m problema só do tráfico de drogas, é do tráfico, das milícias e da polícia, se ela atua de forma violenta e ilegal, como traficantes e milicianos. Ou seja, as favelas estão submetidas a poderes paralelos há muitos anos. E isso não vai mudar se não colocarmos uma polícia comunitária e respeitosa na favela. Não adianta a ilusão de que descriminalizando as drogas os problemas dessas áreas se resolveriam como por encanto.

Você fala em “plano básico de Segurança Pública”, que deveria ser de Estado e, não, de governo, como tudo é no país. Dava para nos passar um mínimo deste básico?

SR: Qualquer plano voltado para combater a violência e a criminalidade hoje no Brasil tem que focalizar a redução dos homicídios, porque nossas taxas de homicídios e mortes violentas (estas últimas incluem os acidentes de trânsito) são escandalosas. O resto da criminalidade (crimes contra o patrimônio etc.) será reduzido quando tivermos políticas sociais combinadas com políticas de segurança inteligentes e voltadas para defender a vida: todas as vidas, mas especialmente as vidas que realmente estão em risco, as dos jovens das periferias. Esse plano não pode ser apenas de um governo. Tem que ser um pacto da sociedade, que não descansa enquanto não pararmos de contar nossos mortos aos milhares. São milhares de jovens.

Nesses anos todos de estudo e pesquisas sobre violência, como andou o gráfico de violência contra as minorias, especialmente a comunidade homossexual? Se aumentou, dizer por quê; se diminuiu, idem.

SR: O maior problema, quando falávamos em violências específicas contra minorias (racismo, homofobia e misoginia) eram os dados. No caso do racismo acho que avançamos muito, graças ao movimento negro: hoje ninguém tem coragem de declarar em público seu racismo, pelo menos nos centros urbanos, porque sabe que pode ir para a cadeia. No caso da homofobia, desde 2003 passamos a desenvolver, junto com o CLAM, da UERJ (http://www.clam.org.br/) – Centro Latino-americano de Sexualiade e Direitos Humanos-, pesquisas nas paradas do Orgulho GLBT. Fizemos pesquisas no Rio, em Porto Alegre, São Paulo, Recife e agora em Buenos Aires e Bogotá e verificamos que os patamares gerais de violências e discriminações que as populações GLBTs sofrem são muito altos. Quase 60% dos entrevistados e entrevistadas em todas as paradas já foram vítimas de algum tipo de discriminação (ver gráficos) e quase metade já foram vítimas de algum tipo de agressão. Este é um padrão muito alto de vitimização! Isso, sem contar, é claro, os casos de homicídios, que são monitorados por notícias que saem nos jornais, pelo Grupo Gay da Bahia, desde os anos 80.

O novo governo fluminense, que já matou à beça nesses 7 meses, pretende na prática conversar com as entidades ligadas à SP e violência, como o Cesec, ou deve ser mais uma daquelas aproximações que servem apenas para para se mostrar?

SR: O governo Sergio Cabral tem uma atitude muito diferente daquela da década Garotinho (que foram oito anos aprofundando o desastre na segurança pública e na história das polícias): o governo Sergio Cabral quer diálogo, com os jovens de favelas, lideranças comunitárias, a mídia, o governo federal, os governos municipais etc. Sair do isolamento, especialmente na área da segurança pública é crucial. Mas é claro que não basta. De fato, nos primeiros oito meses ocorreram várias ações traumáticas na vida da cidade e a polícia quase não fez outra coisa do que responder a crises. E muitas vezes usou de força letal excessiva, o que confirma uma tradição tenebrosa da polícia fluminense, uma das que mais mata no mundo (veja gráfico). O problema a meu ver é que até agora nenhum plano de segurança voltado para a redução de homicídios foi anunciado. Ou seja, há muita ação reativa e pouco plano. É aquela resposta de todo dia. Mais do mesmo. Mesmo assim, seis meses é pouco para um julgamento definitivo. Eu ainda mantenho minhas esperanças de que esse comando da PM, com Cel. Ubiratan à frente, que tem longa tradição de diálogo, possa se recuperar e repor políticas de segurança inteligentes e voltadas para a defesa e não para a morte.

Não há também nenhuma política nacional de Segurança Públia. Como o governo federal reage à possibilidade de termos um plano básico de SP, como são as conversas com ele, se existem? Sobre o Plano Nacional de Segurança, recém lançado pelo governo federal, o que você acha?

SR: Os governos federais têm sido tradicionalmente omissos no tema da segurança pública no Brasil. É como se achassem que o problema é dos governadores. E isso deu no que deu, um país com problemas crescentes de violência. O primeiro governo Lula desenhou um excelente programa de segurança, mas não o tirou do papel. Foi um desempenho decepcionante.

Agora lança um segundo programa. É sempre muito positivo quando o governo federal afirma que vai destinar recursos para essa área e que tem um programa de ação. O programa anunciado tem muitos elementos positivos. Vamos torcer e pressionar pra que ele seja cumprido desta vez. São ações que podem salvar vidas. São mais de 50 mil assassinatos por ano no Brasil. É isto que está em jogo. Por isso temos que apoiar as ações prometidas e cobrar sua execução.

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